A Preferência do Arrendatário de Parte de Prédio Urbano Não Constituído em Propriedade Horizontal: a evolução histórica e a incerteza
Márcia Passos
Sócia e Coordenadora do Departamento de Imobiliário do Porto – PRA - Raposo, Sá Miranda & Associados, SP, RL
• O direito de preferência no direito civil português: breve análise da sua evolução
Em 1919, o Decreto n.º 5:411, publicado no Diário do Governo Série I – n.º 80, de 17 de abril, reuniu toda a legislação referente ao arrendamento de prédios rústicos e urbanos, começando por enunciar disposições gerais das quais constam as noções de contrato de arrendamento, prédio urbano e prédio rústico, consagrando depois um conjunto de normas inerentes aos seus vários aspetos, entre eles, registo do arrendamento, renovação, sublocação e transmissão do arrendamento. Os direitos e obrigações dos senhorios e inquilinos de prédios urbanos foram também regulados de forma especial neste diploma, bem como o regime dos arrendamentos de estabelecimentos comerciais e industriais.
A primeira menção à existência do direito de preferência do arrendatário de prédio urbano, no caso de venda pelo senhorio, apenas apareceu no ordenamento jurídico português em 1924, com a Lei n.º 1:662, publicada no Diário do Governo Série I – n.º 200, de 4 de setembro, diploma que, revogando a legislação que existia em sentido contrário, veio regular, de forma provisória, aspetos relacionados com requisitos de forma e de validade do contrato de arrendamento, bem como a suspensão de ações e execuções de sentença de despejos de prédios urbanos.
A consagração do direito de preferência do arrendatário encontra-se no artigo 11.º desta Lei, “O principal locatário, comercial ou industrial, de prédio urbano pode usar do direito de opção nos termos da legislação geral, quando o senhorio vender o prédio.”
A preocupação do legislador, ao consagrar tal direito de preferência na venda do prédio, foi, então, a de conferir uma certa proteção ao arrendatário comercial ou industrial e ao negócio desenvolvido por este, assegurando, assim, a possibilidade de continuidade do desenvolvimento de uma determinada atividade profissional, comercial ou industrial no prédio arrendado.
Posteriormente, em 1948, através da Lei n.º 2:030, publicada no Diário do Governo Série I – n.º 143, de 22 de junho de 1948, tal direito de preferência veio também a ser expressamente atribuído ao arrendatário que desenvolvesse no locado uma profissão liberal.
Mas, se por um lado, o legislador ampliou o direito de preferência na venda do prédio arrendado a arrendatários não comerciais, por outro lado, determinou como critério de atribuição desse direito o tempo de exercício da respetiva atividade profissional no locado. Assim, apenas tinha direito de preferência na venda do prédio, o arrendatário que exercesse no locado, há mais de um ano, comércio, indústria ou profissão liberal.
Além disso, o legislador apontou desde logo aquele que viria a ser o regime do direito de preferência do arrendatário de uma parte de um prédio, concretamente o arrendatário do andar ocupado num prédio constituído em propriedade horizontal, estipulando que tal preferência viria a ser atendido nas mesmas condições.
Como se constata, o direito de preferência a favor do arrendatário de prédio urbano não existia então para o arrendatário de prédio com fins habitacionais, mas tão só para aqueles arrendatários que no locado desenvolvessem uma das referidas atividades e foi só volvidos 29 anos que o legislador veio a alargar este direito de preferência ao arrendatário de prédio urbano destinado a habitação.
Na verdade, apenas com a Lei n.º 63/77, de 25 de agosto, com o objetivo de contribuir para a adoção de uma política de acesso à habitação própria, foi consagrado que também o arrendatário habitacional de imóvel urbano passaria a ter direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento dos respetivos imóveis. Além disso, foi também contemplado que o arrendatário de uma fração autónoma de imóvel urbano gozaria de igual direito de preferência, em caso de compra e venda ou dação em cumprimento da respetiva fração. Porém, para o arrendatário habitacional não era exigível um período mínimo de permanência no locado para que pudesse ser titular de tal direito de preferência.
Através da Lei n.º 42/90, de 10 de agosto, foi concedida ao Governo autorização para alterar o regime jurídico do arrendamento urbano, do que veio a resultar o DL n.º 321-B/90, de 15 de outubro, diploma que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano (doravante designado por RAU). O direito de preferência do arrendatário de prédio urbano ou de sua fração autónoma continuou a merecer a atenção do legislador que manteve o regime então vigente, muito embora sem distinção do tipo de arrendatário. O direito de preferência passou, assim, a ser conferido a qualquer arrendatário (com algumas exceções) e não apenas aos arrendatários habitacionais e aos que desenvolvessem uma atividade comercial, industrial ou profissão liberal. Ficou também claro que o direito de preferência respeitava apenas ao local arrendado e não a qualquer outra parte do prédio do qual o local arrendado fizesse parte.
Em 2006, o RAU veio a ser revogado pelo Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, lei esta que alterou a redação da norma relativa ao direito de preferência do arrendatário, criando, a partir de então e até hoje, diversas interpretações acerca do seu sentido e âmbito de aplicação.
• O direito de preferência do arrendatário de prédio urbano após o NRAU e as preocupações do regime atual
O artigo 47.º do RAU manteve-se em vigor até à revogação deste diploma legal.
O NRAU teve como precedente legislativo a Proposta de Lei n.º 140/IX, da qual constava a indubitável intenção de eliminar o direito de preferência dos arrendatários na alienação dos prédios arrendados, com a justificação de que o exercício deste direito complicava os negócios e criava entraves à livre circulação da propriedade. O texto da Proposta para alteração do CC, concretamente, para a redação do artigo 1096.º era: “Nos arrendamentos urbanos regidos pela presente secção, nenhuma das partes tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento da outra, salvo preceito expresso em contrário.”
Contudo, assim não sucedeu e o texto final, em vez de eliminar o direito de preferência dos arrendatários manteve-o na redação que se conhece do então artigo 1091.º, n.º 1, alínea a) do CC, alterando-se a expressão de “prédio urbano ou de sua fração autónoma” para “local arrendado” e aumentando-se o período de tempo mínimo em que o contrato deve estar em vigor, passando-se assim de mais de um ano, para mais de três anos.
A mencionada alteração da designação de prédio urbano ou de sua fração autónoma, para local arrendado veio, desde então e até hoje, a motivar as mais variadas interpretações doutrinais e jurisprudenciais, motivadas também pelas alterações introduzidas pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro, diploma que teria como objetivo o de esclarecer o regime do exercício do direito de preferência. Como se sabe, tal objetivo foi frustrado e até desvirtuado, sendo causador de insegurança jurídica.
Para além de outras novidades introduzidas em 2018, o legislador veio, no n.º 8 da norma, a conferir ao arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, cujo fim é o habitacional, um direito de preferência equivalente ao do arrendatário de uma fração autónoma, ou seja, um direito de preferência relativo apenas à quota-parte efetivamente ocupada pelo arrendatário no prédio em propriedade total ou plena.
Por outro lado, refere ainda a norma, no seu número 9 que os arrendatários podem exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade. Neste caso, o legislador não consagrou como requisito para o exercício do direito de preferência por parte do arrendatário o facto de se tratar de arrendamento para habitação, abrangendo, assim, na nossa perspetiva, todos os arrendatários tal como os mesmos eram abrangidos pela redação anterior dada ao artigo 1091.º do CC, bem como pela redação do artigo 47.º do RAU e pelas redações anteriores das normas equivalentes, como já se expôs.
O outro elemento que consideramos, desde o início, no mínimo, desestabilizador era aquele que contemplava que o direito de preferência do arrendatário de parte de prédio em propriedade total tem direito de preferência mas apenas e só no que respeita à parte do prédio que ocupa, como se fosse possível este arrendatário destacar aquela parte do prédio urbano e adquirir apenas aquela parte.
O regime então consagrado criava no arrendatário que ocupa parte do prédio em regime de propriedade total, a convicção de que será possível comprar, apenas e só, a parte que ocupava, quando, como bem sabemos, assim não é. Na verdade, não seria possível adquirir parte de um prédio, pois sobre o mesmo prédio apenas pode existir um direito de propriedade, salvo aqueles onde existe o regime da compropriedade. E, repare-se, considerando que o arrendatário pretenderia (apesar de ser impossível) adquirir a parte do prédio que ocupava, mas, para o efeito, necessitaria de recorrer ao crédito bancário, nunca conseguiria tal crédito considerando a hipoteca exigível pelo mutuante. É que não é juridicamente possível constituir hipotecas sobre parte de um prédio em propriedade total. A compra de parte de um prédio colide também com o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, o que o legislador não teve, seguramente, em conta.
A controvérsia e as dificuldades de aplicação prática foram de tal ordem que a vigência da norma não chegou sequer a dois anos, tendo sido declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 299/2020, de 16 de junho.
Porém, se a declaração de inconstitucionalidade veio resolver inúmeros problemas, veio, por outro lado, levantar a questão do sentido e alcance do número 9 da mesma disposição legal, segundo a qual se mantém o direito de preferência do (ou dos) arrendatário em caso de venda de um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, adquirindo, consequentemente, na respetiva proporção, a totalidade do mesmo em regime de compropriedade.
A primeira questão que se coloca é a de saber se existindo um prédio com vários arrendatários, se tal direito de preferência pode ser exercido por qualquer um deles ou se apenas pode ser exercido por todos em conjunto. Parece-nos que a segunda opção tornaria a solução praticamente inaplicável, pois, muito dificilmente teremos situações em que todos os arrendatários têm iguais pretensões e até condições financeiras para exercer tal direito de preferência. Por isso, acreditamos que a intenção do legislador terá sido a de permitir que qualquer arrendatário ou alguns deles em conjunto, ou todos, caso isso se verifique, poderem exercer o respetivo direito de preferência. Aliás, a própria norma isso expressa, quando se refere a arrendatários que assim o pretendam.
Uma outra questão respeita, uma vez exercido o direito de preferência por parte do arrendatário ou dos arrendatários (alguns ou todos), à aquisição proporcional da totalidade do imóvel. Afigura-se-nos de difícil alcance a referida proporcionalidade. Bastará equacionar a hipótese de um prédio, em regime de propriedade total, com seis espaços individualizados, sendo que apenas três deles se encontram arrendados, estando os demais desocupados. Se considerarmos que os três arrendatários exercem o direito de preferência, os mesmos passarão a ser comproprietários da totalidade do imóvel, mas necessariamente em diferente proporção daquela que tinham enquanto arrendatários. Após a aquisição, a compropriedade é proporcional ao todo do prédio e já não à parte que cada um deles ocupava enquanto arrendatário.
Assim, se o número 9 não está direta e exclusivamente relacionado com o eliminado número 8 do artigo 1091.º, a redação é, pois, imprecisa e carece de urgente intervenção legislativa, de forma a, por hipótese, passar a contemplar que a proporção da compropriedade será aquela que resulte da aquisição e da quantidade de comproprietários. Isto, claro, se a opção for a de manter a norma do número 9 em coerência com a proteção dada aos arrendatários das denominadas “lojas históricas”, cujo regime está regulado pela Lei n.º 42/2017, de 14 de junho.
Em 1919, o Decreto n.º 5:411, publicado no Diário do Governo Série I – n.º 80, de 17 de abril, reuniu toda a legislação referente ao arrendamento de prédios rústicos e urbanos, começando por enunciar disposições gerais das quais constam as noções de contrato de arrendamento, prédio urbano e prédio rústico, consagrando depois um conjunto de normas inerentes aos seus vários aspetos, entre eles, registo do arrendamento, renovação, sublocação e transmissão do arrendamento. Os direitos e obrigações dos senhorios e inquilinos de prédios urbanos foram também regulados de forma especial neste diploma, bem como o regime dos arrendamentos de estabelecimentos comerciais e industriais.
A primeira menção à existência do direito de preferência do arrendatário de prédio urbano, no caso de venda pelo senhorio, apenas apareceu no ordenamento jurídico português em 1924, com a Lei n.º 1:662, publicada no Diário do Governo Série I – n.º 200, de 4 de setembro, diploma que, revogando a legislação que existia em sentido contrário, veio regular, de forma provisória, aspetos relacionados com requisitos de forma e de validade do contrato de arrendamento, bem como a suspensão de ações e execuções de sentença de despejos de prédios urbanos.
A consagração do direito de preferência do arrendatário encontra-se no artigo 11.º desta Lei, “O principal locatário, comercial ou industrial, de prédio urbano pode usar do direito de opção nos termos da legislação geral, quando o senhorio vender o prédio.”
A preocupação do legislador, ao consagrar tal direito de preferência na venda do prédio, foi, então, a de conferir uma certa proteção ao arrendatário comercial ou industrial e ao negócio desenvolvido por este, assegurando, assim, a possibilidade de continuidade do desenvolvimento de uma determinada atividade profissional, comercial ou industrial no prédio arrendado.
Posteriormente, em 1948, através da Lei n.º 2:030, publicada no Diário do Governo Série I – n.º 143, de 22 de junho de 1948, tal direito de preferência veio também a ser expressamente atribuído ao arrendatário que desenvolvesse no locado uma profissão liberal.
Mas, se por um lado, o legislador ampliou o direito de preferência na venda do prédio arrendado a arrendatários não comerciais, por outro lado, determinou como critério de atribuição desse direito o tempo de exercício da respetiva atividade profissional no locado. Assim, apenas tinha direito de preferência na venda do prédio, o arrendatário que exercesse no locado, há mais de um ano, comércio, indústria ou profissão liberal.
Além disso, o legislador apontou desde logo aquele que viria a ser o regime do direito de preferência do arrendatário de uma parte de um prédio, concretamente o arrendatário do andar ocupado num prédio constituído em propriedade horizontal, estipulando que tal preferência viria a ser atendido nas mesmas condições.
Como se constata, o direito de preferência a favor do arrendatário de prédio urbano não existia então para o arrendatário de prédio com fins habitacionais, mas tão só para aqueles arrendatários que no locado desenvolvessem uma das referidas atividades e foi só volvidos 29 anos que o legislador veio a alargar este direito de preferência ao arrendatário de prédio urbano destinado a habitação.
Na verdade, apenas com a Lei n.º 63/77, de 25 de agosto, com o objetivo de contribuir para a adoção de uma política de acesso à habitação própria, foi consagrado que também o arrendatário habitacional de imóvel urbano passaria a ter direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento dos respetivos imóveis. Além disso, foi também contemplado que o arrendatário de uma fração autónoma de imóvel urbano gozaria de igual direito de preferência, em caso de compra e venda ou dação em cumprimento da respetiva fração. Porém, para o arrendatário habitacional não era exigível um período mínimo de permanência no locado para que pudesse ser titular de tal direito de preferência.
Através da Lei n.º 42/90, de 10 de agosto, foi concedida ao Governo autorização para alterar o regime jurídico do arrendamento urbano, do que veio a resultar o DL n.º 321-B/90, de 15 de outubro, diploma que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano (doravante designado por RAU). O direito de preferência do arrendatário de prédio urbano ou de sua fração autónoma continuou a merecer a atenção do legislador que manteve o regime então vigente, muito embora sem distinção do tipo de arrendatário. O direito de preferência passou, assim, a ser conferido a qualquer arrendatário (com algumas exceções) e não apenas aos arrendatários habitacionais e aos que desenvolvessem uma atividade comercial, industrial ou profissão liberal. Ficou também claro que o direito de preferência respeitava apenas ao local arrendado e não a qualquer outra parte do prédio do qual o local arrendado fizesse parte.
Em 2006, o RAU veio a ser revogado pelo Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, lei esta que alterou a redação da norma relativa ao direito de preferência do arrendatário, criando, a partir de então e até hoje, diversas interpretações acerca do seu sentido e âmbito de aplicação.
• O direito de preferência do arrendatário de prédio urbano após o NRAU e as preocupações do regime atual
O artigo 47.º do RAU manteve-se em vigor até à revogação deste diploma legal.
O NRAU teve como precedente legislativo a Proposta de Lei n.º 140/IX, da qual constava a indubitável intenção de eliminar o direito de preferência dos arrendatários na alienação dos prédios arrendados, com a justificação de que o exercício deste direito complicava os negócios e criava entraves à livre circulação da propriedade. O texto da Proposta para alteração do CC, concretamente, para a redação do artigo 1096.º era: “Nos arrendamentos urbanos regidos pela presente secção, nenhuma das partes tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento da outra, salvo preceito expresso em contrário.”
Contudo, assim não sucedeu e o texto final, em vez de eliminar o direito de preferência dos arrendatários manteve-o na redação que se conhece do então artigo 1091.º, n.º 1, alínea a) do CC, alterando-se a expressão de “prédio urbano ou de sua fração autónoma” para “local arrendado” e aumentando-se o período de tempo mínimo em que o contrato deve estar em vigor, passando-se assim de mais de um ano, para mais de três anos.
A mencionada alteração da designação de prédio urbano ou de sua fração autónoma, para local arrendado veio, desde então e até hoje, a motivar as mais variadas interpretações doutrinais e jurisprudenciais, motivadas também pelas alterações introduzidas pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro, diploma que teria como objetivo o de esclarecer o regime do exercício do direito de preferência. Como se sabe, tal objetivo foi frustrado e até desvirtuado, sendo causador de insegurança jurídica.
Para além de outras novidades introduzidas em 2018, o legislador veio, no n.º 8 da norma, a conferir ao arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, cujo fim é o habitacional, um direito de preferência equivalente ao do arrendatário de uma fração autónoma, ou seja, um direito de preferência relativo apenas à quota-parte efetivamente ocupada pelo arrendatário no prédio em propriedade total ou plena.
Por outro lado, refere ainda a norma, no seu número 9 que os arrendatários podem exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade. Neste caso, o legislador não consagrou como requisito para o exercício do direito de preferência por parte do arrendatário o facto de se tratar de arrendamento para habitação, abrangendo, assim, na nossa perspetiva, todos os arrendatários tal como os mesmos eram abrangidos pela redação anterior dada ao artigo 1091.º do CC, bem como pela redação do artigo 47.º do RAU e pelas redações anteriores das normas equivalentes, como já se expôs.
O outro elemento que consideramos, desde o início, no mínimo, desestabilizador era aquele que contemplava que o direito de preferência do arrendatário de parte de prédio em propriedade total tem direito de preferência mas apenas e só no que respeita à parte do prédio que ocupa, como se fosse possível este arrendatário destacar aquela parte do prédio urbano e adquirir apenas aquela parte.
O regime então consagrado criava no arrendatário que ocupa parte do prédio em regime de propriedade total, a convicção de que será possível comprar, apenas e só, a parte que ocupava, quando, como bem sabemos, assim não é. Na verdade, não seria possível adquirir parte de um prédio, pois sobre o mesmo prédio apenas pode existir um direito de propriedade, salvo aqueles onde existe o regime da compropriedade. E, repare-se, considerando que o arrendatário pretenderia (apesar de ser impossível) adquirir a parte do prédio que ocupava, mas, para o efeito, necessitaria de recorrer ao crédito bancário, nunca conseguiria tal crédito considerando a hipoteca exigível pelo mutuante. É que não é juridicamente possível constituir hipotecas sobre parte de um prédio em propriedade total. A compra de parte de um prédio colide também com o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, o que o legislador não teve, seguramente, em conta.
A controvérsia e as dificuldades de aplicação prática foram de tal ordem que a vigência da norma não chegou sequer a dois anos, tendo sido declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 299/2020, de 16 de junho.
Porém, se a declaração de inconstitucionalidade veio resolver inúmeros problemas, veio, por outro lado, levantar a questão do sentido e alcance do número 9 da mesma disposição legal, segundo a qual se mantém o direito de preferência do (ou dos) arrendatário em caso de venda de um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, adquirindo, consequentemente, na respetiva proporção, a totalidade do mesmo em regime de compropriedade.
A primeira questão que se coloca é a de saber se existindo um prédio com vários arrendatários, se tal direito de preferência pode ser exercido por qualquer um deles ou se apenas pode ser exercido por todos em conjunto. Parece-nos que a segunda opção tornaria a solução praticamente inaplicável, pois, muito dificilmente teremos situações em que todos os arrendatários têm iguais pretensões e até condições financeiras para exercer tal direito de preferência. Por isso, acreditamos que a intenção do legislador terá sido a de permitir que qualquer arrendatário ou alguns deles em conjunto, ou todos, caso isso se verifique, poderem exercer o respetivo direito de preferência. Aliás, a própria norma isso expressa, quando se refere a arrendatários que assim o pretendam.
Uma outra questão respeita, uma vez exercido o direito de preferência por parte do arrendatário ou dos arrendatários (alguns ou todos), à aquisição proporcional da totalidade do imóvel. Afigura-se-nos de difícil alcance a referida proporcionalidade. Bastará equacionar a hipótese de um prédio, em regime de propriedade total, com seis espaços individualizados, sendo que apenas três deles se encontram arrendados, estando os demais desocupados. Se considerarmos que os três arrendatários exercem o direito de preferência, os mesmos passarão a ser comproprietários da totalidade do imóvel, mas necessariamente em diferente proporção daquela que tinham enquanto arrendatários. Após a aquisição, a compropriedade é proporcional ao todo do prédio e já não à parte que cada um deles ocupava enquanto arrendatário.
Assim, se o número 9 não está direta e exclusivamente relacionado com o eliminado número 8 do artigo 1091.º, a redação é, pois, imprecisa e carece de urgente intervenção legislativa, de forma a, por hipótese, passar a contemplar que a proporção da compropriedade será aquela que resulte da aquisição e da quantidade de comproprietários. Isto, claro, se a opção for a de manter a norma do número 9 em coerência com a proteção dada aos arrendatários das denominadas “lojas históricas”, cujo regime está regulado pela Lei n.º 42/2017, de 14 de junho.
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