“Presidente da Casa do Douro não pode estar como representante da produção e do comércio”;

“Presidente da Casa do Douro não pode estar como representante da produção e do comércio”
Miguel Anaya, vice-presidente demissionário da Casa do Douro – Federação Renovação do Douro (CD-FRD).
Ao cabo de cinco anos a assistir a uma “Direção que nunca se aproximou dos seus associados e, inclusivamente, até se afastou, exercendo um mandato isolado dos seus federados”, o vice-presidente da Casa do Douro – Federação Renovação do Douro (CD-FRD) apresentou a demissão. Denuncia “o estado calamitoso” a que chegou a instituição e acusa o presidente, António Lencastre, de “conflito de interesses”.
Em entrevista à “Vida Económica”, Miguel Anaya não tem dúvidas: “Ele não pode estar como vice-presidente do Conselho Interprofissional [do IVDP] em representação da produção e, ao mesmo tempo, ser presidente do conselho de administração de uma das maiores empresas que integra o comércio, que é a AEVP [Associação das Empresas de Vinho do Porto].
Vida Económica – Apresentou a demissão de vogal da CD-FRN, estrutura na qual assumia as funções de vice-presidente, invocando razões não só de descontentamento mas de crítica ao funcionamento interno, dizendo que “a Direção nunca se aproximou dos seus associados e, inclusivamente, até se afastou, exercendo um mandato isolado dos seus federados”. Os seus federados, entenda-se, produtores da Região Demarcada do Douro?
Miguel Anaya – É verdade. A Federação, embora seja legalmente uma associação, engloba cerca de 30 federados, entre cooperativas e associações, todas da Região Demarcada do Douro. Mas essas cooperativas e associações têm, por seu lado, os seus próprios associados, na sua maioria pequenos agricultores, que têm um, dois, três hectares, que são, no fundo, aqueles que constituem a matriz do Douro. 
 
VE – E esta Direção, este tempo todo, esteve afastada destes produtores?
MA – Sistematicamente. Eu consegui fazer aprovar [um documento] em duas assembleias gerais – que foi votado favoravelmente e que devia ter sido implementado pela Direção, mas nunca foi – em que se programava uma série de contactos com os agricultores ao longo dos anos, com deslocações aos concelhos, às freguesias, às sedes das cooperativas, onde iríamos contactar não só com os seus diretores, mas com os seus associados, para encontrarmos um modelo de comportamento que integrasse as aspirações dessas pessoas. Nunca se conseguiu fazer isso. Foi sempre boicotada essa intenção. Nunca conseguimos levar a Casa do Douro, a Federação, às suas bases. O que, obviamente, levou a um afastamento que não mais era tolerável.
 
VE – E os produtores da RDD manifestaram algum descontentamento por causa disso?
MA – Os nossos federados, sim. Nomeadamente, as associações e as cooperativas, sim, ao ponto de se recusarem a pagar as quotas da Federação, levando-a ao estado calamitoso em que está. Mas os pequenos agricultores acabam por exprimir a sua revolta por omissão. Ou seja, eles não sabem quem nós somos. Não sabem quem sou eu, quem é o engenheiro Lencastre, o que é a Federação, nem o que ela faz. Por culpa nossa, de não conseguirmos descer ao nível do pequeno agricultor, conversar com ele, na sua linguagem, tentar perceber quais são as suas aspirações. Por fúteis que sejam. Temos de ouvir toda a gente e tentar integrar as coisas dentro do desiderato comum. E esse pequeno agricultor/associado da cooperativa não nos conhece. Pura e simplesmente, não faz ideia de quem nós somos, o que é lamentável ao fim de cinco anos.
 
VE – Na carta de demissão fala, entre outras coisas, da situação financeira da CD/FRN, com quotas em atraso, dívidas a fornecedores e salários em atraso aos funcionários. Qual é a situação, neste momento?
MA – Continua na mesma. Ou seja, cada dia que passa é um dia de agravamento da situação.
 
VE – Mas não está a entrar receita?
MA – Não. Absolutamente nenhuma. Repare: nós tínhamos, nos primeiros três anos de vida como nova Casa do Douro, o respaldo do decreto-lei que instituiu o concurso que nós ganhámos. E aí era estabelecido que um determinado valor das quotas de produção era entregue a esta Federação para que pudesse começar a crescer e ser interventiva na região. Mas, ao fim de três anos, tudo acabou. O IVDP não nos deu mais verba.
 
VE – Quanto era esse montante?
MA – É um montante que deveria ter ascendido, por decisão do Conselho Interprofissional [do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto - IVDP], a cerca de 500 mil euros por ano. Ou seja, metade das taxas que são pagas pelos agricultores, mas que, por força de contingências adversas, criadas pelo próprio IVDP e de que não quis abdicar, se resumiu a cerca de 60 a 65 mil euros por ano. Um valor irrisório, portanto.
 
VE – E essa verba esgotou-se?
MA – Essa verba esgotava-se ano a ano, com os trabalhadores, com as despesas. Era uma verba minimamente necessária para aquela casa funcionar. E esgotava-se ano a ano. E a partir do momento em que deixou de existir esse pagamento, que ocorreu em 2015, 2016 e 2017, em 2018, 2019, e agora em 2020 não vai haver esses pagamentos. A dívida foi crescendo. Fomos gerindo a situação fazendo o mínimo de despesa possível, mas, entretanto, as coisas acumularam-se e estamos em dívida com esse valor.
 
VE – Qual é o valor da dívida?
MA – Temos neste momento um valor [de dívida] que se aproxima e que eventualmente até ultrapassará os 100 mil euros. Mas é uma situação económica que, com a nova Direção que saia deste processo eleitoral e de transformação, temos garantias, que eu não posso já declarar quais são, porque só se concretizarão com uma reforma da Direção e da maneira de estar da Federação, de que esse valor irá imediatamente para a posse da Federação, para que possa exercer a sua atividade.
 
VE – Tem referido que o presidente da CD/FRD, António Lencastre, ocupa uma dupla função de representante da produção, como presidente da Casa do Douro, e de produtor/engarrafador [é presidente da adega cooperativa Caves Vale do Rodo].
MA – O facto de ser produtor é bom que assim seja. E ele, de facto, é produtor. Só que, paralelamente…
 
VE – Mas há alguma incompatibilidade?
MA – Há. Não necessariamente ao nível da Direção da Cooperativa, porque, independentemente do que possa assacar ao engenheiro Lencastre, eu tenho de lhe fazer a justiça de sempre o ter visto como homem interessado em resolver problemas. Só que acaba por ser muito submisso à Associação [das Empresas] Exportadoras de Vinho do Porto [AEVP], da qual a empresa da qual é presidente do Conselho de Administração também faz parte. Isto, da parte da Federação [Renovação do Douro], desde que não prejudique os agricultores e se omita mais do que aquilo que age contra os produtores, o que tem sido um facto – exceto este ano, com a Reserva Qualitativa –, ele nunca foi prejudicial aos agricultores. Mas o que é facto é que, ao nível do Conselho Interprofissional, eu sempre o avisei que ele estava numa posição impossível. Porque ele não pode estar como vice-presidente do Interprofissional em representação da produção e, ao mesmo tempo, ser presidente do conselho de administração de uma das maiores empresas que integra o comércio, que é a AEVP, que está do outro lado. Ou seja, há ali uma clara incompatibilidade, um conflito de interesses que este ano se tornou claramente latente. O que poderia levar, um dia, se alguém quiser enveredar por aí, à anulação das decisões do Conselho Interprofissional [do IVDP], porque ele não pode estar nessa dupla função sem declarar essa incompatibilidade.
 
VE – E há intenção de alguém, até sua, de o fazer?
MA – Eu tenho reservas muito grandes quanto a isso. Eu gostaria de o fazer. Aliás, tenho várias cooperativas e produtores que estão a ser prejudicados que querem fazê-lo. Mas temos de olhar para isto com muita cautela. Temos de encontrar um equilíbrio entre aquilo que é a defesa dos interesses dos viticultores e a defesa dos interesses da região. Ninguém pode negar que há um grande azedume contra os privilégios da Região Demarcada do Douro, nomeadamente a atribuição do benefício. Não é novidade para ninguém – alguns membros de conselhos de administração de grandes entidades produtoras têm defendido isso – que há gente, comerciantes, exportadores, na Região Demarcada do Douro, que querem acabar com benefício. Entendem que o mercado deve ser livre, que as uvas devem ser compradas ao preço o mais baixo possível. E não é só com o benefício. Querem acabar com as regras todas, por exemplo, com a pipa negociada que é paga a um preço minimamente justo ao agricultor. E querem também acabar com a obrigação de vinificar e engarrafar no Douro. Querem acabar com estas restrições. Mesmo ao nível da Comissão Europeia.
 
VE – Que opinião tem sobre isso?
MA – Eu entendo que, infelizmente, o benefício é a única garantia de um pagamento minimamente adequado às uvas aos agricultores. Desaparecendo o benefício, eles acabariam por ver as uvas compradas a um preço miserável. Tirando-lhes isso, tira-se-lhes a válvula de escape que permite um mínimo de remuneração pelas uvas, até pelos custos de produção na região, que são enormes e que ninguém quer ver. 

Reserva qualitativa “foi perversamente usada” 
em detrimento dos produtores do Douro
 
“A reserva qualitativa vai ser uma retirada forçada aos produtores” e “vai passar tudo para as mãos do comércio. Tenho a certeza absoluta que muitas empresas exportadoras vão fazer o negócio da vida delas, no sentido de ficarem com a reserva qualitativa, já paga a 500 euros, subsidiada pelo próprio dinheiro dos agricultores que estava cativado em Lisboa”.
Nesta entrevista, Miguel Anaya até concede que o Governo esteve “de boa-fé” ao criar a reserva qualitativa para a Região Demarcada do Douro, mas lança um forte alerta a todo o setor: “Vai haver uma capacidade de os comerciante beneficiarem à força, usando as contingências que a região atravessa, dessa reserva qualitativa”. E garante que vai pedir contas ao Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP). 
 
VE – Em consequência da pandemia, das quebras de consumo e das movimentações do setor, o Ministério da Agricultura criou uma reserva qualitativa de 10.000 pipas de mosto (550 litros cada), fixando um apoio de 500 euros por pipa [Portaria n.º 201-B/2020], num máximo de cinco milhões de euros suportados pelo Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto (IVDP). Como olha para essa medida?
MA – A reserva qualitativa mereceu desde o início a oposição da maior parte dos membros da Direção da Casa do Douro. Três deles manifestaram-se contra aquilo que estava a ser instituído. 
 
VE – O presidente inclusive?
MA – Não, o presidente era exatamente aquele que estava a favor. Aliás, chegou um dia à Direção, trazia uma portaria feita conjuntamente com o comércio [AEVP] e disse: ‘esta é a posição unânime da produção e do comércio para a reserva qualitativa’. Nós olhámos para a portaria e dissemos: ‘não, não é’. A partir daí, o engenheiro Lencastre abandonou a discussão connosco e foi discuti-la apenas com os membros do Interprofissional, que o entendem melhor. Não houve mais discussão e a portaria acabou por ser aprovada nos termos em que está. Eu não sou contra a reserva qualitativa, mas ela acabou por se revelar um instrumento fatal para a produção.
 
VE – Porque é que diz isso?
MA – Neste momento, ao que se assiste no Douro é a isto: supostamente, a reserva qualitativa era para o produtor ou para um grupo de produtores associados numa determinada instituição, comercial ou não, ou numa cooperativa, poderem ficar com essa reserva, que estava subsidiada em 500 euros pelo Orçamento do Estado ou pelas taxas de produção que estavam cativadas nas Finanças, para, ao longo do período em que tem de ficar guardada, ir sendo gradualmente libertada e terem a capacidade de vender depois essa reserva por um preço que fosse generoso e lhes permitisse realizar algum dinheiro. Mas, obviamente, desde o início – e tenho a certeza que esta estratégia do comércio estava delineada mesmo antes de irem para o Interprofissional e não acredito que o engenheiro Lencastre não soubesse, porque ele faz parte dessa estrutura que analisa estas situações ao nível da AEVP  – os comerciantes acabaram por se apoderar. E, durante a campanha, tenho a certeza, apoderar-se-ão da maior parte da reserva qualitativa.
 
VE – Quando diz apoderar-se, quer dizer o quê?
MA – Quero dizer que é uma chantagem para que os comerciantes se locupletem com essa reserva qualitativa. E digo como. Eu tenho notícias de cooperativas – e é fácil provar isso – que, quando vão vender o produto vinificado vinho do Porto como fazem todos os anos e este lhes é pago, essa entidade diz: ‘sim senhor, eu compro-te, mas tudo tens de me incluir nessa reserva qualitativa’. E todos estão a sucumbir a essa exigência. Portanto, vai ser uma retirada forçada aos produtores, nomeadamente, da reserva qualitativa e dos direitos e potencialidades de negociação que daí advinham. E vai passar tudo para as mãos do comércio. E eu duvido que, este ano, os comerciantes, fiados nessa reserva qualitativa, cumpram sequer a indicação de venda com que se comprometeram para o benefício normal do ano, que foram 92 mil pipas. Porque eu sei que eles estão a restringir imenso a aquisição de vinho do Porto, porque também têm as contingências deles. 
Mas atenção, logo que uma nova Direção tome conta da Casa do Douro e se seu fizer parte dela ou, mesmo não fazendo parte dela, possa ter outra forma de defender os interesses dos agricultores, vou pedir ao IVDP, no final da campanha, que nos dê todos os dados da aquisição desse vinho, para saber quem é que o comprou e quem é ficou com ele. Porque tenho a certeza absoluta que muitas empresas exportadoras vão fazer o negócio da vida delas, no sentido de ficarem com a reserva qualitativa, já paga a 500 euros, subsidiada pelo próprio dinheiro dos agricultores que estava cativado em Lisboa. E, eventualmente – também tenho notícias disso e veremos no final quando o IVDP tiver libertado os números –, vão chegar ao pé dos agricultores e vão dizer: ‘eu fico com a reserva qualitativa, mas não pago 900 ou 1000 euros que devia pagar, primeiro porque já estão pagos 500 euros, mas mesmo esses 500 eu não tos pago, porque eu infelizmente estou sujeito a ficar com o vinho cinco, seis, sete, oito anos sem o poder vender, tenho uma obrigação de conservação e não te vou pagar tudo’. 
 
VE – Vai haver chantagem, é isso?
MA – Chantagem é a aquisição forçada do vinho como condição para adquirirem o benefício comum. Mas vai haver uma capacidade de os comerciantes se locupletarem, de beneficiarem, para ser simpático, de beneficiarem à força, usando as contingências que a região atravessa, dessa reserva qualitativa. Mas, atenção. E disso eu não abdico. Esta nova Casa do Douro ou, eventualmente, alguém isoladamente, no final desta campanha, irá exigir que sejam libertados os dados para saber quem é que beneficiou. Porque estamos a falar de cinco milhões de euros, que, divididos por cinco, seis, sete, oito empresas, dá…
 
VE – Um milhão a cada?
MA – Cerca de um milhão a cada uma. E, se o IVDP não quiser dar esses dados, nós vamos exigi-los judicialmente. E, aí, vamos exigir àqueles que abusaram dos produtores durante este período que sejam obrigados a repor aquilo de que indevidamente beneficiaram.
 
VE – Deu conhecimento da sua demissão ao presidente do IVDP, Gilberto Igrejas?
MA – Sim, tive oportunidade de falar com ele, mandei-lhe também a carta de demissão. Eu tenho de fazer aqui um ponto de ordem. Eu entendo que o doutor Gilberto Igrejas [presidente do IVDP], a ministra da Agricultura [Maria do Céu Antunes], o secretário de Estado [da Agricultura, Nuno Russo] e a maior parte dos membros do Interprofissional da produção estão de perfeita boa-fé nisto. Tenho a convicção de que acreditavam piamente – até porque acompanhei o processo ao longos destes meses – que estavam a beneficiar os agricultores e que ia ser bom para eles. Só que o comércio já estava perfeitamente industriado para, de forma homogénea, agir no sentido de se apropriar deste benefício indevido deste ano 2020. 
 
VE – Então, uma boa intenção poderá derivar em algo perverso?
MA – É perverso. Foi perversamente usado em benefício de quem não precisava desse benefício e em detrimento daqueles para quem a portaria [que institui a reserva qualitativa] foi criada. E isto vai criar um problema mais grave nos próximos anos, porque esta reserva qualitativa [e na portaria que a institui] tem lá uma válvula de escape a dizer que se tem de guardar [o vinho] durante três anos e libertar gradualmente nos outros sete, até ao limite de 10, mas, se uma maioria qualificada do Interprofissional deliberar que pode ser libertado antes, pode ser libertado antes. E eu não tenho dúvidas nenhumas que essa válvula foi criada exatamente para que esse vinho venha todo para o mercado muito antes dos 10 anos.

 


TERESA SILVEIRA teresasilveira@vidaeconomica.pt, 01/10/2020
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