A transposição da(s) Diretiva(s) em matéria de combate ao branqueamento de capitais
Jorge Serrote
Advogado Associado Senior da DLA Piper
No passado dia 12 de fevereiro a Comissão Europeia anunciou, no quadro da adoção do seu pacote mensal de processos de infração aos Estados-membros por incumprimento da legislação comunitária, que Portugal não tinha ainda notificado Bruxelas de quaisquer medidas de execução relativamente à Diretiva (UE) 2018/843 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo (usualmente denominada como quinta diretiva relativa ao branqueamento de capitais), que deveria ter sido integralmente transposta até 10 de Janeiro.
Só a 20 de fevereiro o Conselho de Ministros aprovou uma Proposta de Lei que procede à transposição da referida Diretiva para o ordenamento jurídico português da quinta e, adicionalmente e cumulativamente com - sem que tal fosse previsível - a transposição da Diretiva (UE) 2018/1673, de 23 de outubro, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa ao combate ao branqueamento de capitais através do direito penal.
Torna-se assim necessário analisar o impacto da implementação das referidas Diretivas na legislação nacional.
A quinta diretiva visa, entre outros aspetos, reforçar os poderes das Unidades de Informação Financeira, aumentar a transparência em torno das informações sobre os beneficiários efetivos, bem como regulamentar as moedas virtuais e os cartões pré-pagos em matéria de prevenção do branqueamento de capitais.
No âmbito das medidas relativas às criptomoedas e a outros ativos virtuais pretende-se o combate aos riscos relativos à anonimidade associada aos mesmos, considerando a aceitação destes como meio de pagamento e o facto de poderem ser transferidos, armazenados e comercializados por via eletrónica. Assim, as entidades e os prestadores de serviços que exerçam atividades económicas relacionadas com estes ativos passarão a estar sujeitos à supervisão do Banco de Portugal, designadamente em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo. Será assim necessário alterar a Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto (lei relativa ao combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo), por forma a acomodar esta nova realidade.
Outra matéria abrangida pela Proposta de Lei que aqui analisamos, e que implica a alteração da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, bem como o Regime Jurídico do Registo Central do Beneficiário Efetivo, prende-se com a necessidade de garantir uma maior transparência das estruturas societárias e de outras pessoas coletivas, dos trusts e dos centros de interesses coletivos sem personalidade jurídica similares.
Conforme anteriormente referido, a Proposta de Lei veio também proceder à transposição, da Diretiva (UE) 2018/1673 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2018, sem que tal fosse expectável - até mesmo porque a data limite de transposição é 3 de dezembro de 2020 . Esta Diretiva define as infrações penais e sanções no domínio do branqueamento de capitais, com vista a facilitar a cooperação policial e judiciária entre os países da União Europeia. Por outro lado, permite também aos Estados-Membros criminalizar as situações em que o autor da infração “suspeitasse ou devesse ter sabido que os bens provinham de uma atividade criminosa”, alargando assim o espectro das condutas associadas ao crime de branqueamento de capitais
No âmbito da transposição desta Diretiva, o Governo esclareceu em comunicado que o ordenamento jurídico nacional se encontra já dotado dos mecanismos substantivos e processuais necessários à prevenção e combate ao crime de branqueamento, estando em linha com os principais instrumentos de direito internacional e com as recomendações e orientações do Grupo de Acão Financeira Internacional (GAFI). Com efeito, no que se refere ao direito penal, lê-se no Relatório de Avaliação Mútua de Portugal de dezembro de 2017, aprovado pelo GAFI, que «as sanções penais aplicáveis são proporcionais e dissuasivas».
No entanto, para que a transposição da Diretiva (UE) 2018/1673 seja plenamente realizada, será necessário alargar o quadro de ilícitos típicos subjacentes ao crime de branqueamento e o espectro das suas condutas típicas, bem como agravar a moldura penal nos casos em que o infrator é uma entidade obrigada, e cometa a infração no exercício das suas atividades profissionais.
Neste sentido é possível notar que algumas das infrações referidas pela Diretiva (UE) 2018/1673 e especificadas noutros atos jurídicos da União Europeia não se encontram ainda, na sua integralidade, abrangidas pelo artigo 368.º-A do Código Penal. Desta forma, parece necessário que a Proposta de Lei preveja que o catálogo dos ilícitos típicos subjacentes ao crime de branqueamento seja revisto e alargado.
Em concreto estabelece a Diretiva que os seguintes comportamentos, quando cometidos intencionalmente, constituem uma infração penal: i) transferência ou conversão de bens (ativos de qualquer tipo), com conhecimento de que esses bens provêm de uma atividade criminosa, com o fim de encobrir ou dissimular a sua origem ilícita ou de auxiliar quaisquer pessoas implicadas nessa atividade a furtarem-se às consequências jurídicas dos seus atos; ii) encobrimento ou dissimulação da verdadeira natureza, origem, localização, utilização, circulação ou propriedade de determinados bens com conhecimento de que tais bens provêm de uma atividade criminosa; iii) aquisição, detenção ou utilização de bens, com conhecimento, no momento da sua receção, de que provêm de uma atividade criminosa; iv) cumplicidade, instigação e tentativa relativas a estas infrações.
Adicionalmente, a Diretiva determina que os seguintes comportamentos são considerados como atividade criminosa, ou seja, relevantes para o crime de branqueamento de capitais: i) qualquer tipo de envolvimento criminoso na prática de uma infração que, nos termos do direito nacional, seja punível com pena ou medida de segurança privativa de liberdade de duração máxima superior a 1 ano ou um limiar mínimo superior a 6 meses; e ii) desde que tal comportamento não esteja já abrangido pela categoria atrás referida, as infrações constantes de uma lista de 22 categorias designadas de crimes, incluindo todas as infrações definidas pela legislação da UE designada pela Diretiva.
A Diretiva prevê ainda que as infrações abranjam os bens que provenham de comportamentos que tenham tido lugar noutro país da União Europeia ou mesmo num país terceiro, quando os comportamentos subjacentes constituíssem atividade criminosa caso tivessem ocorrido em território nacional. Os Estados-Membros devem assim garantir que as pessoas que cometeram ou que estiveram envolvidas nesta atividade criminal são devidamente punidas.
Nesta matéria assume ainda relevo o designado “autobranqueamento”, isto é, quando certos tipos de atividades de branqueamento de capitais são cometidas pelo autor da atividade criminosa que gerou os bens, impondo a Diretiva que os Estados-Membros assegurem a sua punição.
Adicionalmente, determina a Diretiva que os Estados-Membros devem assegurar a condenação por infrações de branqueamento de capitais uma vez determinada a proveniência criminosa dos bens, pese embora não se conheçam todos os elementos factuais ou todas as circunstâncias relacionadas com essa atividade, incluindo mesmo a identidade do autor da infração. Fica também previsto que a condenação por branqueamento de capitais não está dependente de uma condenação anterior ou simultânea por essa atividade criminosa que gerou os bens. Neste âmbito será necessário alterar o artigo 368.º-A do Código Penal.
Em suma, a Proposta de Lei que será em breve discutida e aprovada na Assembleia da República levará a uma alteração de diversos diplomas legais em matéria de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo. É importante que a discussão da Proposta de Lei seja acompanhada de um envolvimento dos stakeholders, em particular os reguladores, para garantir uma fundamentação teórica e prática que responda às várias exigências sempre colocadas por uma reforma desta dimensão. Os próximos tempos representarão assim um desafio para as empresas, reguladores e para todos os que trabalham nesta matéria.