O segundo sistema de Macau e Hong-Kong só sobreviverá se souber integrar a China continental
Chefe de redação do Semanário Católico de Macau e representante no antigo território português da EWTN, o maior grupo de comunicação social católica à escala mundial, José Miguel Encarnação defende que o segundo sistema que vigora em Macau e Hong-Kong só sobreviverá se estas duas cidades souberem integrar-se na China continental. O também correspondente da Fundação AIS e do grupo Canção Nova faz um balanço positivo da administração chinesa de Macau desde a transferência de soberania, em Dezembro de 1999, e garante que a Igreja Católica local manterá a sua relação direta com o Vaticano e com o resto do mundo.
Vida Económica – Vinte anos após a transferência de administração de Macau para a República Popular da China, como analisa a agora Região Administrativa Especial?
José Miguel Encarnação – O melhor indicador é ver a reação de quem deixou Macau antes de 1999 e hoje volta para matar saudades de uma terra que fica, invariavelmente, nos corações de quem lá vive. O território aumentou exponencialmente em termos de área, o que foi sendo complementado com mais investimento interno e externo, cujos frutos são visíveis no rendimento mensal das famílias. Apesar de a população ter crescido em mais de 200 mil pessoas em 25 anos (cerca de 40% de aumento), os sucessivos governos não permitiram que o fosso entre ricos e pobres aumentasse e muito menos que os novos residentes viessem a constituir guetos, sendo amplamente integrados na sociedade. Só para dar um exemplo: a taxa de desemprego ronda 1,3%, o que significa que ainda hoje toda a mão de obra que chega a Macau é absorvida pelo mercado de trabalho.
VE – Está a falar a nível económico. E como está Macau no plano social?
JME – Macau cresceu muito depressa, principalmente entre 2004 e 2014. Desde o início deste século, talvez apenas os Emiratos Árabes Unidos, o Qatar, ou outro qualquer país do Golfo Pérsico tenha registado índices de crescimento tão elevados. Foi uma década que dificilmente será repetida, até porque de tempos a tempos há um inevitável reajustamento da economia, seja ele natural ou resultado de políticas emanadas do Governo. É aqui que entra o aspecto social. Com o aumento do número de trabalhadores e do valor médio dos salários, o custo de vida subiu quase desmesuradamente, principalmente no que respeita ao mercado imobiliário. Para a maioria da população é hoje impossível comprar casa e o arrendamento atinge valores semelhantes aos praticados em cidades como Londres, Nova Iorque ou Paris. E não estou a falar de habitação de luxo... Quanto à Saúde e à Educação, depois de alguns anos de algum desnorte, o Governo conseguiu contornar as deficiências sentidas com o reforço das verbas inscritas no Orçamento da RAEM para estas duas áreas e com a dotação de mais meios físicos e humanos. A construção do novo hospital público já arrancou e os últimos dados do PISA divulgados pela OCDE colocam os alunos de Macau no terceiro lugar a nível mundial, atrás da China continental e de Singapura.
VE – Aparentemente, até ao momento, Macau não sofreu qualquer contágio dos movimentos anti-Pequim ou pró-democracia em Hong-Kong. Poder-se-á afirmar que Macau é o bom aluno do regime chinês?
JME – Garanto-lhe que bom aluno não é, pois, se o fosse, Macau ainda estaria melhor. É mais como aquele aluno que não irrita o professor na sala de aula, mas também não passa com distinção. Dou-lhe um exemplo: há anos que o Governo Central sensibiliza Macau para diversificar a economia, por forma a que não fique tão dependente do sector dos jogos de fortuna e azar, ou dos casinos, como preferir. Claro está que um território com pouco mais de 30 quilómetros quadrados não tem muito mais a oferecer do que serviços para além do jogo. No entanto, há outros setores, como o das convenções ou da cultura e entretenimento, que podem ser desenvolvidos em prol de toda a população e de quem visita Macau. É que, ao contrário do que acontece na maioria dos países, estamos a falar de áreas que mesmo deficitárias podem ser apoiadas pelo Governo local. Há dinheiro para isso e muito mais. Mas, voltando a Hong-Kong e ao bom ou mau aluno, considero que a razão para o que se está a passar no outro lado do Delta do Rio das Pérolas está no passado histórico de Hong-Kong. Basta referir que Hong-Kong foi uma colónia e Macau nunca o chegou a ser na prática. Os ingleses fazem-me lembrar aquele senhorio que, mesmo depois de vender a casa aos inquilinos, não interioriza que a casa já não é sua.
A Guerra Fria do dinheiro
VE – Sendo que a economia de Hong-Kong sempre influenciou a economia de Macau, até que ponto esta se tem ressentido com os acontecimentos que há mais de seis meses afligem Hong-Kong?
JME – Quase arrisco afirmar que muito pouco ou mesmo nada. Dados divulgados pela Direcção dos Serviços de Turismo apontam para um aumento do número de turistas provenientes da China continental, que coincide com a gradual escalada de violência em Hong-Kong. Macau está cada vez mais integrado na Grande Baía do Rio das Pérolas, pelo que é indiferente para as empresas de Macau se os seus parceiros de negócio estão localizados em Hong-Kong, Zhuhai, Shenzhen, Cantão, Dongguan e por aí fora. Estamos a falar da área geográfica com maior acumulação de riqueza a nível mundial. Pode parecer um paradoxo, mas o segundo sistema que vigora em Macau e Hong-Kong só sobreviverá se estas duas cidades souberem integrar-se na China continental. Macau está a caminhar no sentido correto, já Hong-Kong parece não entender ou não querer entender esta inevitabilidade.
VE – É chefe de redação de “O Clarim”, o jornal da Diocese de Macau, e está envolvido noutros projetos de comunicação social católica em Portugal, no Brasil e nos Estados Unidos. Também na religião, Macau é uma porta para o mundo?
JME – Uma das interpretações para o significado da palavra “Macau” na língua chinesa é “Porto Seguro”. A Religião foi a única área que Deng Xiaoping manteve na esfera do Marxismo. A República Popular da China abriu ao mundo mas fechou a Religião a sete chaves. Desde sempre que o Império do Meio conviveu mal com a interferência das grandes potências estrangeiras, nomeadamente dos Estados Unidos e da Inglaterra. Se tivermos em conta que a Igreja Católica é a única religião que detém um Estado, o Vaticano, e que o seu líder é o Papa, não é difícil compreender que o Partido Comunista Chinês sempre tenha procurado controlar a gestão dos assuntos relacionados com a Igreja Católica na China. É inquestionável que o mundo vive tempos conturbados; estamos a assistir a uma nova Guerra Fria, sendo que desta vez conta mais o dinheiro do que as armas, e neste aspecto a China leva larga vantagem. Neste âmbito, Macau volta a ser um porto seguro, pois, mesmo que do exterior seja vetado o acesso da China a novos mercados, a Igreja Católica em Macau manterá a sua relação directa com o Vaticano e com o resto do mundo.