“A verdade processual encontra-se muito longe da verdade material e isso não é desejável”
Para o Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), “o princípio da verdade material é sucessivamente desconsiderado por razões de ordem processual”. Sobre a colaboração premiada afirma que “é um meio extremamente importante no combate à criminalidade organizada”. Critica que o Código Penal e o Código de Processo Penal estejam “constantemente a ser alterados de forma avulsa”
VJ - No âmbito da preparação de um Pacto sobre a Justiça, o SMMP tem participado em quatro grupos de trabalho com a Ordem dos Advogados, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses, a Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução e o Sindicato dos Funcionários Judiciais. Que acordos já há e que possa adiantar? E relativamente à área penal há alguma medida urgente a tomar e que o SMMP defenda que deva estar nesse Pacto?
António Ventinhas – Nos últimos meses diversos representantes das instituições supramencionadas têm mantido um amplo debate sobre questões fulcrais para a Justiça portuguesa.
A base de trabalho é o consenso, ou seja, procuramos pontos e patamares mínimos de entendimento. No seio dos grupos há matérias que já se encontram consensualizadas pelos representantes das diversas associações, mas que carecem de aprovação pelas respectivas direcções. Por essa razão, antes de existir um acordo final aprovado não vou adiantar mais pormenores.
VJ - Afirmou recentemente que “os nossos instrumentos processuais penais não foram concebidos para aplicar a pessoas que permanecem uma curta estadia no nosso território e aqui cometem delitos”, sendo que “muitos dos delitos cometidos por turistas que se encontram em Portugal de passagem acabam por ficar impunes”. Que soluções devem ser adotadas?
AV – As formas especiais do processo penal e o regime das declarações para memória futura deveriam ser aperfeiçoados. Por exemplo, no processo sumaríssimo deveria ser possível que o arguido desse logo o seu consentimento, na fase de inquérito, à sanção que o Ministério Público (MP) pretende aplicar. Se em momento posterior o Magistrado Judicial não concordasse com a sanção proposta pelo MP, o processo seria remetido para outra forma processual. O facto de a lei impor que se proceda à notificação pessoal do arguido só no momento em que o Juiz recebe o requerimento do MP com a proposta de sanção inviabiliza este ato relativamente a quem se encontra de passagem no nosso País. A alteração do regime legal das notificações que se efetuam no estrangeiro também é algo extremamente importante a ter em conta, pois este é um dos pontos que causam bloqueios processuais. No que concerne às declarações para memória futura, este mecanismo é extremamente importante quando a vítima não reside em Portugal, em especial quando o mesmo sucede com o arguido. Se o ofendido e o arguido se encontram ambos de passagem no nosso País, a posterior prova dos factos em julgamento fica extremamente dificultada.
VJ - Tem sido muito discutida recentemente a “delação premiada”, que também tem sido debatida num dos grupos de trabalho para um Pacto Sobre a Justiça. Foi já referido anteriormente que a proposta obteve grande consenso entre juízes, magistrados do MP e funcionários judiciais, embora seja público que o Bastonário da OA esteja contra. Será possível, mesmo assim, assistirmos a algum acordo sobre esta figura? Porque é importante que se avance com a “delação premiada” e quais os cuidados a observar?
AV – A colaboração premiada é um meio extremamente importante no combate à criminalidade organizada. Países como os Estados Unidos da América, Itália, Brasil, entre outros, consagraram um direito premial para quem quebre o silêncio típico das organizações mafiosas. Quem conheça os grandes julgamentos da Máfia nos Estados Unidos da América e em Itália percebe qual o grau de importância que deve ser dado a quem pertença às organizações criminosas e queira colaborar. A condenação de muitos dos “padrinhos” da Máfia siciliana e americana só foi possível desta forma.
Recordo aqui uma pequena história sobre o julgamento de John Gotti, o chefe da Família Gambino, um dos clãs mais poderosos da história dos Estados Unidos.
John Gotti tornou-se conhecido como o Don Teflon porque se dizia que com ele as acusações nunca pegavam. Conseguiu ser absolvido de acusações por crimes graves, uma vez que os ofendidos tinham súbitos ataques de amnésia e os júris ficaram aterrorizados com a possibilidade de condenarem uma pessoa cuja reputação violenta era bem conhecida. O Padrinho troçou por diversas vezes com a Procuradora e a polícia que o investigou, pois sentia-se impune. Os factos alteraram-se quando Sammy Gravano, conhecido como o Touro, decidiu falar num julgamento e quebrar a Omerta, o código de silêncio que todos os mafiosos conhecem. O depoimento deste e o seu conhecimento privilegiado do crime organizado na América permitiram infringir um rude golpe na Máfia, tendo Sammy Gravano cumprido uma pena substancialmente mais baixa. Quem colaborou beneficiou de uma redução da sua pena, mas permitiu que muitos homicidas e traficantes de estupefacientes fossem condenados. Penso que o saldo foi muito positivo para a sociedade. Entre nós, já existem igualmente afloramentos do direito premial que poderão ser potenciados. É do interesse da comunidade que se melhore a eficácia no combate ao terrorismo e criminalidade organizada e esta é cada vez mais transnacional. Quanto à possibilidade de acordo sobre esta matéria com a Ordem dos Advogados, teremos de aguardar o finalizar dos trabalhos. Há muitas formas de premiar quem colabora de forma decisiva para a descoberta da verdade. Temos de ultrapassar velhos preconceitos e fantasmas. Não podemos fazer analogias entre os colaboradores da PIDE que facilitavam a perseguição de opositores do regime fascista, entre eles alguns dos fundadores da nossa democracia e aqueles que colaboram para obter a condenação de homicidas, traficantes de estupefacientes e outros indivíduos que cometem crimes graves.
VJ - Que alterações vê como essenciais ao Código Penal e ao Código de Processo Penal?
AV – Numa entrevista é muito difícil elencar todas as alterações importantes que deveriam ser efetuadas a este dois diplomas legais. No que diz respeito ao Código de Processo Penal, destaco uma linha de raciocínio que deverá ser levada em linha de conta numa próxima revisão. O princípio da verdade material é sucessivamente desconsiderado por razões de ordem processual. A verdade processual encontra-se muito longe da verdade material e isso não é desejável. A anterior Ministra da Justiça, Dra. Paula Teixeira da Cruz, teve coragem e inverteu este estado de coisas ao consagrar a possibilidade de o interrogatório do arguido poder ser valorado em audiência de julgamento, caso o último optasse pelo silêncio. Na verdade, foram muitos os casos em que autores de crimes graves como homicídios e incêndios confessaram os factos durante o primeiro interrogatório judicial e remeteram-se ao silêncio posteriormente, conseguindo assim ser absolvidos por não ser possível valorar as primeiras declarações. A realidade hoje é diferente e não surgiram as calamidades que muitos previram. A verdade e a Justiça ganharam com esta alteração histórica. É preciso aprofundar este caminho noutros pontos, designadamente no que diz respeito ao escrutínio do depoimento das testemunhas. Quando se pensa em rever os dois diplomas mencionados, pensamos sempre em grandes revisões, mas os mesmos estão constantemente a ser alterados de forma avulsa (em especial o Código Penal).
VJ - A propósito dos incêndios florestais, disse que “a investigação criminal tem um tempo próprio para apresentar conclusões rigorosas, assentes em factos científicos” e que “quem investiga deve fazê-lo serenamente e realizar todas as diligências pertinentes, sem se deixar condicionar por agendas políticas ou mediáticas”. Partindo do pressuposto que isto também se aplica a todos os outros crimes em investigação, sejam de que natureza for, concorda que a Justiça deve, também, apresentar os seus resultados no prazo mais curto possível, sob pena de se perder o “efeito” de Justiça?
AV – A celeridade é uma preocupação de todos os que operam na área da Justiça, em especial dos magistrados do MP que há mais de 20 anos apresentam mensalmente a sua estatística de inquéritos finalizados aos seus superiores hierárquicos. O prazo médio nacional de conclusão das investigações criminais é inferior a seis meses, o que me parece bastante razoável. No entanto, a perceção na opinião pública é bastante diferente. As investigações que se encontram sob os holofotes dizem respeito à criminalidade económico-financeira, envolvem dezenas de arguidos, cooperação judiciária com outros países, milhares de documentos, perícias contabilísticas e financeiras complexas e análise de dados muito morosa.
Por essa razão, esses inquéritos demoram muitos anos a ser investigados em Portugal, como sucede igualmente noutros países. Se, nestes casos, se admitisse a colaboração premiada, o tempo de resolução poderia reduzir-se. Se, em vez de o MP ter a necessidade de efectuar o rastreamento e a busca de contas bancárias em vários países, houvesse alguém que lhe dissesse como os factos ocorreram, quais as contas bancárias onde foi depositado o dinheiro e quem beneficiou, tudo seria mais fácil e rápido. Talvez por essa razão haja muitas pessoas a quem não interesse que se aprofunde o direito premial. Em alguns escândalos económico-financeiros nos Estados Unidos, as investigações conseguiram concluir-se mais rapidamente com a colaboração de intervenientes nos próprios factos. Devemos caminhar para uma justiça cada vez mais célere, mas sem nunca se abdicar do rigor na investigação e apuramento cabal dos factos. Para alguns existe interesse que algumas investigações acabem muito rápido para que não se investigue tudo. Já em sede de julgamento, os mesmos intervenientes recorrem à utilização de expedientes que levam a que os julgamentos se arrastem durante vários anos.
VJ - A falta de quadros na Justiça é o maior problema que afeta o setor?
AV – Sem dúvida. A falta de magistrados do MP, funcionários de justiça, inspectores da Polícia Judiciária e de Magistrados Judiciais nos Tribunais Administrativos e Fiscais condicionam muito a qualidade da Justiça. As investigações criminais são cada vez mais complexas e exigem um número mais elevado de recursos humanos. A falta de magistrados já está a prejudicar a especialização na investigação criminal.
VJ - “Ao mesmo tempo em que se aplicam penas de prisão elevadas na criminalidade económico-financeira, como nunca se tinha visto até agora, a repressão da pequena e a média criminalidade segue o caminho oposto”, escreveu. Porque acontece isto e o que deve acontecer: diminuir as penas na criminalidade económico-financeira ou aumentar a repressão da pequena e a média criminalidade?
AV – Na minha opinião, na grande maioria dos casos, a punição da pequena e média criminalidade não cumpre a sua função. Se analisarmos o valor da pena de multa aplicada a muitos crimes, constatamos que é inferior ao regime das contraordenações. Quem ingira substâncias alcoólicas e conduza, provavelmente será punido de forma mais grave se cometer uma contraordenação do que se cometer um crime, quando deveria precisamente ser o contrário. É frequente suceder que quem conduz com uma taxa de álcool no sangue de 1 grama seja punido de forma mais grave do que que aquele que o fez com 1,5 gramas. No que diz respeito às penas de prisão suspensas na sua execução que se aplicam a muitos crimes da dita média criminalidade, é frequente tratarem-se de verdadeiras absolvições encapotadas. Há arguidos que preferem até que lhes seja aplicada uma pena de prisão suspensa na sua execução do que lhes seja aplicada uma pena de multa.
VJ - Já alertou para a “grande tentação” de “forças subterrâneas” do poder político para em certos momentos, como os da revisão do Estatuto do MP, tentar controlar o MP e assim a investigação criminal. Vê que isto esteja a acontecer ou possa vir a ocorrer?
AV – O texto final da Revisão do Estatuto do MP ainda não se encontra aprovado no Parlamento. Na recente revisão da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada em dezembro passado, verificámos que no último momento foi aprovada uma norma que condiciona a autonomia interna dos magistrados, ao permitir a sua mobilidade incontrolada, violando o princípio inconstitucional da inamovibilidade dos magistrados. Se a aprovação desta Lei ocorreu em momento tão recente, inclusivamente contra o texto proposto pela Sua Excelência a Ministra da Justiça e com os votos favoráveis do partido que suporta o Governo, tudo é possível.
Durante muito tempo, a investigação criminal e a punição incidiam essencialmente sobre os membros das classes mais baixas. À medida que se foram subindo patamares na escala social, a tentação de se pretender controlar o MP e a investigação criminal é cada vez maior.
VJ - Um trabalho do “Público” veio revelar que um em cada 73 cidadãos dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa está preso enquanto um em cada 736 cidadãos portugueses está preso. A Justiça em Portugal é mesmo “mais dura para os negros” como é apontado nesse trabalho, na sua opinião?
AV – Na minha opinião, não é possível efetuar tal relação. Segundo a minha ótica, tal sucede porquanto existem problemas de integração no nosso país, em especial nas grandes áreas metropolitanas, o que motiva a criminalidade.
VJ - Como vê e acompanha o desenvolvimento do direito penal nos restantes países lusófonos? E quais os trabalhos desenvolvidos com outros países lusófonos e instituições homólogas nesta área?
AV – O desenvolvimento do direito penal nos países lusófonos tem uma geometria muito variável, pois este ramo está intimamente ligado à defesa de bens jurídicos e à existência de um Estado de Direito sólido. Cada país lusófono tem características muito próprias. Há um esforço de reflexão e aperfeiçoamento do Direito Penal em todos os países, sendo certo que a ligação à comunidade internacional e o trabalho académico local muito contribuem para o efeito. O Sindicato dos Magistrados do MP mantém contactos com associações congéneres da lusofonia, em especial do Brasil, Guiné-Bissau e Moçambique. Em momento recente recebemos na nossa sede um grupo de auditores de justiça angolanos que estiveram em formação no Centro de Estudos Judiciários e a troca de experiências foi muito interessante.
Há cerca de um ano tivemos igualmente a oportunidade de convidar uma procuradora de São Tomé e Príncipe como moderadora de uma conferência que organizámos.
Contamos ter representantes de países lusófonos no nosso próximo congresso, que se realizará em Fevereiro.
VJ - Foi aprovada recentemente a Lei n.º 83/2017, que consagra medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo. Qual a sua opinião sobre este diploma? Crê que vá ser eficaz?
AV – A opinião sobre este diploma é muito positiva, pois adota algumas boas soluções aprovadas a nível europeu. A mudança do tipo de crime de branqueamento de capitais e a restrição do pagamento de transações em numerário são dois outros pontos que melhoram o combate ao branqueamento de capitais. A engenharia financeira e jurídica para ocultação dos lucros ilícitos está sempre em plena mutação. O que é eficaz hoje poderá deixar de o ser num futuro próximo. Apesar de se tratar de um combate difícil, o mesmo tem de ser travado.