Art. 14.º-A do NRAU: o último suspiro de exequibilidade dos documentos particulares;

Art. 14.º-A do NRAU: o último suspiro de exequibilidade dos documentos particulares


Gonçalo Tavares Gomes

Sócio, Ferreira Leite, Rua, Pontes & Associados
O n.º 1 do artigo 14.º-A do Novo Regime do Arrendamento Urbano (Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro) foi introduzido pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, aquando da primeira revisão daquele diploma. A sua redação corresponde, no essencial, à versão original do n.º 2 do artigo 15.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), tendo, no entanto, introduzido uma diferença com importantes consequências práticas, como veremos mais adiante: é que, enquanto o n.º 2 do artigo 15.º estabelecia tão-somente que o contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, era título executivo para a ação de pagamento de renda, o n.º 1 do artigo 14-º-A passou a prever que, além das rendas, tais documentos são também título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário.
Estamos, portanto, no domínio dos documentos a que, por disposição especial, é atribuída força executiva e que figuram entre as espécies de títulos executivos do n.º 1 do artigo 703.º do Novo Código de Processo Civil (NCPC) – elenco que, recorde-se, foi entretanto objeto de uma importante alteração processual em 2013, aquando da aprovação do NCPC. Com efeito e com o objetivo de pôr cobro à proliferação de embargos de executado com a finalidade de discutir o documento particular e o crédito subjacente, o legislador optou por deixar de reconhecer a natureza de título executivo aos documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações, obrigando assim o credor a discuti-los a montante, em sede declarativa1. De entre os documentos particulares, subsistiram então os documentos particulares autenticados e os títulos de crédito, dotados de segurança e fiabilidade no comércio jurídico em termos de justificar a possibilidade de o respetivo credor poder aceder desde logo à via executiva e ainda, dentro destes, a sua exequibilidade como meros quirógrafos, desde que alegados, no requerimento executivo, os factos constitutivos da relação subjacente.
Tomando como boa a solução legal adotada, não deixa de ser curioso, senão mesmo intrigante, que as diversas alterações ao NRAU que desde então se verificaram (mais propriamente seis, desde a aprovação do NCPC2) não só tenham sucessivamente mantido, em sentido contrário ao do espírito da reforma processual civil de 2013, a exequibilidade de um documento particular como o comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, que nem sequer está assinado pelo devedor, como ainda tenha sido aditado um n.º 2 ao artigo 14.º-A, de acordo com o qual o contrato de arrendamento, quando acompanhado da comunicação ao senhorio do valor em dívida, prevista no n.º 3 do artigo 22.º-C do regime jurídico das obras em prédios arrendados, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de agosto, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente à compensação pela execução de obras pelo arrendatário, em substituição do senhorio. Poder-se-á argumentar que estamos, em qualquer dos casos, perante títulos complexos cuja exequibilidade depende da sua conjugação com o próprio contrato de arrendamento, assinado pelo devedor, na veste de arrendatário/senhorio, consoante o caso. Poder-se-á argumentar ainda que os respetivos valores, porque contratualmente previstos num caso e devidamente discriminados no outro, são suficientemente objetivos para conferir a segurança necessária ao respetivo título. Não são, todavia, infrequentes as situações de execuções injustas, instauradas com base nos títulos executivos do artigo 14.º-A do NRAU.
Desde logo porque a exigência de que o comprovativo da comunicação do montante em dívida seja acompanhado do contrato de arrendamento é, por si só, insuficiente para impedir que sejam, pelo alegado credor, forjados valores, com o mero intuito de aceder à via executiva.
Depois porque, ao contrário da (regra geral, pacífica) obrigação de pagamento de renda, a exigibilidade de determinados encargos ou despesas não raras vezes é, ela própria, controvertida. Pense-se, por exemplo, numa situação em que as partes discutam entre si a responsabilidade por determinados danos surgidos no locado no decurso da relação locatícia e cuja reparação foi adiantada por uma delas: independentemente da razão que assista a uma delas, bastará comunicar à outra o montante do custo da reparação em que incorreu e que, no seu entendimento, é da responsabilidade da outra para, uma vez munida do respetivo aviso de receção e do contrato, poder desde logo instaurar ação executiva para pagamento de um crédito que é, em si mesmo, de natureza litigiosa3 4.
É certo que, em qualquer dos exemplos acima descritos, ao Executado assiste a possibilidade de lançar mão dos competentes embargos, assim garantindo o exercício do seu contraditório. Não será despiciendo referir, contudo, que, salvo nas restritas hipóteses das alíneas b) a d) do n.º 1 do artigo 733.º do NCPC, terá de prestar caução para evitar o prosseguimento da execução, o que desde logo o coloca numa posição de fragilidade e de iniquidade face à contraparte na relação locatícia, dificilmente justificável em situações em que, reitere-se, a efetiva existência do crédito é controvertida.
O risco de uma execução injusta é ainda potenciado pela circunstância de anteriores alterações legislativas terem permitido cada vez mais hipóteses de a execução se iniciar pela penhora de bens do Executado, postergando-se o contraditório. É, justamente, o caso das execuções baseadas no artigo 14.º-A do NRAU em que o valor não exceda os 10.000,00 J (dez mil euros) e que por isso seguem, nos termos e para os efeitos da alínea d) do n.º 2 do artigo 550.º do NCPC, a forma sumária, a qual, como se sabe, em regra dispensa a citação prévia do Executado (cfr. n.º 3 do artigo 855.º do NCPC).
Ou seja, a pretexto da existência de título executivo que dispensa a ação declarativa e, eventualmente, a sua citação prévia, o Executado vê os seus rendimentos penhorados, antes mesmo de qualquer controlo judicial sobre o crédito invocado ou mesmo de qualquer contraditório. Realidade que se revela ainda mais ingrata quando em causa esteja o fiador que, embora parte na relação locatícia, não está quotidianamente no locado, não dispondo, por isso, dos mesmos meios do arrendatário para exercer, de forma efetiva, o seu contraditório5.
Não se ignora o interesse do credor em poder contar com a presunção de prova da dívida que os títulos executivos do artigo 14.º-A do NRAU lhe oferecem, nem a possibilidade de ficar sem poder valer o seu crédito caso deles não disponha. Parece haver, contudo, um tratamento privilegiado destes títulos face a outros que, em 2013, perderam a sua exequibilidade em nome da prevalência do interesse público de evitar execuções injustas sobre o interesse particular do credor que, sublinhe-se, num cenário de eliminação da exequibilidade do título do artigo 14.º-A do NRAU, não ficaria privado da presunção de prova do direito de crédito, nem perderia a possibilidade de fazer valer o seu crédito – simplesmente não poderia avançar diretamente para a ação executiva.
Mais do que a aparente incoerência sistemática subjacente a esta diferenciação, a conformidade dos títulos executivos do artigo 14.º-A do NRAU com o parâmetro constitucional parece também questionável em face do supra exposto, nomeadamente no que tange ao princípio da tutela jurisdicional efetiva e ao direito a que todos têm a que a causa seja decidida mediante processo equitativo, respetivamente consagrados nos n.ºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa, bem como ao princípio do contraditório consagrado no artigo 32.º, n.º 5, da mesma lei fundamental, extensivo, por identidade de razão, a todas as formas de processo.

Notas:
1. Para uma análise mais detalhada das razões subjacentes a esta opção legislativa, veja-se a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII.
2. Lei n.º 79/2014, de 19 de dezembro, Lei n.º 42/2017, de 14 de junho, Lei n.º 43/2017, de 6 de junho, Lei n.º 12/2019, de 12 de fevereiro, Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, e Lei n.º 2/2020, de 31 de março.
3. Nos antípodas, portanto, da obrigação certa, exigível e líquida a que se refere o artigo 713.º do NCPC.
4. Situação que, até ao aditamento do n.º 2 ao artigo 14.º-A do NRAU, feito pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, configurava, ademais, uma desigualdade de armas entre as partes, na medida em que, até então, o arrendatário não beneficiava sequer de uma tal faculdade.
5. Não é, contudo, pacífica na jurisprudência a possibilidade de utilização do título executivo do artigo 14.º-A do NRAU contra o fiador: a favor da abrangência do fiador veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26.09.2019; contra a extensibilidade ao fiador, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02.12.2019.
19/10/2020
Partilhar
Comentários 0