O reagrupamento familiar, o visto e a legitimidade processual;

O reagrupamento familiar, o visto e a legitimidade processual


Sílvia Galvão Teles

Docente da Universidade Lusíada de Lisboa


O cidadão [estrangeiro] com autorização de residência válida tem direito ao reagrupamento familiar com os membros da família que se encontrem fora do território nacional, que com ele tenham vivido noutro país, que dele dependam ou que com ele coabitem, independentemente de os laços familiares serem anteriores ou posteriores à entrada do residente, nos termos do disposto no art. 98.º, n.º 1, da Lei de Estrangeiros(1) (LE).
Impõe a LE que o procedimento de reagrupamento familiar se inicie com um pedido apresentado pelo cidadão estrangeiro junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF)  do Ministério da Administração Interna (MAI), constituindo a decisão de deferimento do reagrupamento familiar proferida pelos órgãos do SEF um documento instrutório do procedimento com vista à emissão de visto a favor dos familiares(2), o qual, por seu turno, corre junto dos SPE do MNE(3). É que a LE também exige que: a) os familiares do cidadão estrangeiro declarem a sua vontade de reunir com o residente em Portugal, como não poderia deixar de ser; b) seja iniciado um novo procedimento, com a necessária fase de instrução, junto dos SPE, de forma a que possa ser verificado o preenchimento dos pressupostos legais de atribuição do visto(4). Por isso, as entrevistas dos familiares que pretendem juntar-se ao cidadão estrangeiro residente em Portugal decorrem nos SPE e os órgãos do MNE devem, com base nas informações recolhidas, na verificação da autenticidade dos documentos estrangeiros, na experiência e conhecimentos que detêm da realidade local, verificar se os pedidos de visto formulados pelos familiares visam o objetivo legal: permitir concretizar o gozo do direito fundamental ao reagrupamento familiar – direito que é reconhecido ao cidadão estrangeiro residente em território nacional, por força do princípio da equiparação previsto no art. 15.º da CRP – sem prejuízo da segurança interna dos restantes cidadãos residentes em Portugal(5).

Algumas vezes, quando é indeferido o pedido de visto a favor de familiares pelos SPE, depois de deferido o reagrupamento pelo SEF, os cidadãos residentes em Portugal intentam contra o MNE intimações para proteção de Direitos, Liberdades e Garantias (DLG) para pedir a condenação à emissão do visto a favor dos seus familiares invocando a deferimento do reagrupamento proferido pelo SEF. Ora, nesse caso, não se encontra preenchido o pressuposto processual da legitimidade ativa: com efeito, a legitimidade visa assegurar que são partes no processo os sujeitos em cuja esfera jurídica a sentença vai produzir efeitos diretos. Logo, parece-nos duvidoso que se possa processualmente reconhecer legitimidade ativa ao cidadão estrangeiro residente em Portugal, porquanto o pedido a deduzir no processo – emissão de visto – configura um ato administrativo constitutivo do direito de entrada em território nacional na esfera dos seus familiares. E, por isso, não se repercute diretamente na esfera jurídica do titular ao reagrupamento(6).
Inicialmente, a jurisprudência administrativa defendeu – smo, bem – que, nos casos de reagrupamento familiar em que o cidadão estrangeiro usava uma intimação para proteção de DLG, estavam em causa dois procedimentos administrativos distintos, que produziam duas decisões administrativas distintas e com destinatários (interessados) distintos (ie, produzindo efeitos em esferas jurídicas diferentes), pois eram conduzidos perante órgãos administrativos diferentes e visavam fins distintos:
a.) por um lado, o (1.º) procedimento, desencadeado pelo pedido de reagrupamento familiar, formulado junto do SEF pelo cidadão estrangeiro residente legal em Portugal, que tem por finalidade reconhecer ao titular do direito a “chamar” a sua família para junto de si. No fundo, o cidadão obtém o ato administrativo que habilita os seus familiares a deduzir o pedido de entrada em território nacional (sendo o ato simultaneamente parecer instrutor do pedido de visto) e
b.) por outro, o (2.º) procedimento, desencadeado pelo pedido de visto formulado pelos familiares do titular ao direito ao reagrupamento junto dos SPE.
Nos diversos processos de intimação para proteção de DLG de pedido de condenação do MNE na emissão do visto a favor dos familiares, movidos pelo titular do direito ao reagrupamento familiar, foi, a princípio, decidida a ilegitimidade ativa do Autor (por este ser apenas o requerente de reagrupamento familiar e não o titular do direito ao visto). Aí, os Tribunais entendiam – e, smo, bem – que devia figurar como autor na intimação para proteção dos DGL o titular do pedido de visto e não o requerente do pedido de reagrupamento(7).
No entanto, esta jurisprudência uniforme que nos parecia bem fundada mudou por força de um Acórdão do STA(8) que, invertendo a orientação, decidiu tratar-se de um mesmo procedimento, com diferentes fases, e que a parte que pede o reagrupamento familiar – mesmo não sendo titular do direito ao visto – possui legitimidade para ser Autora na intimação.

Notas:
1. A Lei n.º 23/2007, de 4/7, que aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional e transpõe as Diretivas 2014/36/UE, de 26/2, e 2014/66/UE, de 15/5, e 2016/801, de 11/5, alterada pelas Leis n.ºs 28/2019, de 29/3, 26/2018, de 5/7, 102/2017, de 28/8, 59/2017, de 31/7, 63/2015, de 30/6, 56/2015, de 23/6, e 29/2012, de 09/8.
2. Consideram-se membros da família do residente os descritos no art. 99.º, n.º 1, da LE, podendo o reagrupamento familiar também ser autorizado ao (...) “parceiro que mantenha, em território nacional ou fora dele, com o cidadão estrangeiro residente uma união de facto, devidamente comprovada nos termos da lei; os filhos solteiros menores ou incapazes, incluindo os filhos adotados do parceiro de facto, desde que estes lhe estejam legalmente confiados”, nos termos do art. 100.º, n.º 1 da mesma LE.
3. Os Serviços Periféricos Externos do MNE, cujos órgãos dirigentes dispõem de competências consulares são, em regra, embaixadas e consulados.
4. Por Acórdão do STA – com o qual, com o devido respeito, se discorda – proferido à luz da LE na redação anterior a 2012, aquele Venerando Tribunal perfilhou o entendimento de que os SPE não estavam legalmente obrigados a realizar a instrução do pedido de visto, na medida em que ela tinha ocorrido no junto do SEF, aquando da análise do pedido de reagrupamento familiar. Esse entendimento, smo, não nos parecia então e, não nos parece hoje, resultar da LE (nem do CPA), na medida em que o legislador - mais evidentemente a partir de 2012 – admite existir uma fase de instrução (cfr. art. 48.º, n.º 2, e 64.º da LE) e a inexistência de automatismo entre o deferimento do reagrupamento familiar e o deferimento do pedido de visto, já que o parecer do SEF é obrigatório mas não vinculativo (cfr. art. 48.º, n.º 2, e 65.º, n.º 2, da LE).
5. O art. 101.º, n.º 1, estabelece que para o “exercício do direito ao reagrupamento familiar deve o requerente dispor de: a) Alojamento; b) Meios de subsistência, tal como definidos pela portaria a que se refere a alínea d) do n.º 1 do artigo 52.º”. Ou seja: o residente legal que pretenda beneficiar do direito ao reagrupamento familiar deve apresentar o seu pedido junto da direção ou delegação regional do SEF, identificando o requerente e os membros da família a que o pedido respeita.
6. Nota-se que, em alguns países, não é reconhecida a igualdade jurídica de género e, por isso, a decisão judicial pode determinar que os familiares se sintam impelidos a juntar-se ao titular do direito ao reagrupamento. Mais: se os familiares não estiverem interessados no reagrupamento mas o tribunal condenar o MNE à prática desse ato, condenará na prática de um ato impossível e inútil, pois a emissão de visto pressupõe que o familiar se desloque ao SPE e apresente o seu passaporte, no qual é aposto o visto.
7. Cfr. Acórdãos do TCA Sul proferidos nos Proc. 6316/10, de 16/6 e 6606/10, de 9/12. Disponíveis em www.dgsi.pt.
8. Cfr. Acórdão proferido no Proc. n.º 442/11, de 27/7. Disponível em www.dgsi.pt.
04/10/2019
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