“Há uma lógica centralista nos apoios europeus quer para o parque habitacional social quer nas ligações transfronteiriças”;

Nuno Garcia, diretor-geral da GesConsult, considera
“Há uma lógica centralista nos apoios europeus quer para o parque habitacional social quer nas ligações transfronteiriças”
Nuno Garcia mostra reservas sobre o papel do pacote europeu de apoios e do Plano de Recuperação e Resiliência
Membro sénior da Ordem dos Engenheiros, acompanhando o setor há 12 anos, Nuno Garcia fundou, em março de 2014, a GesConsult. Conhecedor do mercado, mostra reservas sobre o papel que o pacote europeu e mesmo o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) possam vir a ter na sustentabilidade do setor da construção e imobiliário.
 
Estão criadas as condições para as empresas de construção e do setor em geral aguentaram os efeitos da segunda vaga da pandemia?
O ano excecional que estamos a viver tem, de facto, trazido desafios imprevisíveis a todos os setores de atividade, e a construção não é exceção. Durante a primeira vaga, assistimos a uma resiliência sustentada pelo esforço grande de todos os players para que as obras não parassem, quando praticamente todas as outras atividades o fizeram. O ambiente de confiança de certa forma manteve-se, apesar do abalo sofrido no investimento estrangeiro, e persistiram as empresas que souberam diversificar o seu portfolio de clientes e explorar novas áreas de negócio.  
Com o avançar dos meses, a quebra na transação de imóveis foi-se manifestando, uma vez que as pessoas têm esperado para ver o que acontece, assim como os atrasos na elaboração de projetos e licenciamentos, o que inviabiliza uma progressão que se queria positiva e no sentido de retoma já no arranque de 2021. As empresas muito dependentes de investimento a curto prazo, na área do turismo, hotelaria e residencial, podem ser as que demonstram mais dificuldade a superar esta fase. 
Ainda assim, no global, acredito que o setor venha a mostrar a capacidade de superação que teve em crises anteriores, obviamente com uma diminuição do volume de negócios, mas na perspetiva de se manter um pilar para a recuperação da economia.     
 
A opinião partilhada por muitos especialistas é que o setor, que se mostrou resiliente na primeira vaga, começa a apresentar uma quebra...
A verdade é que, nove meses após o início do problema, não existe ainda uma noção de quanto tempo mais será necessário para começarmos a vencer esta crise e a instabilidade que acompanha esta imprevisibilidade não beneficia ninguém. 
Julgo que a saturação e desgaste associados a tantos meses de constrangimentos e o facto de Portugal ter, desde o verão, entrado numa escalada de crescimento da pandemia, também não ajudam. E não esqueçamos que uma das características deste setor é a inércia, pelo que é normal que a diminuição do volume de negócios se comece a sentir mais agora; na primeira fase colhemos os frutos da boa dinâmica que o setor vinha a demonstrar.
Por todos estes motivos é muito importante que existam, por parte do Governo e das autarquias, sinais de confiança e de vontade de continuarem os projetos previstos.
 
Considera que pacote de apoio europeu vai resolver as debilidades e permitir que as empresas do setor se aguentem?
Tenho as minhas reservas sobre o papel que o pacote europeu e mesmo o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) possam vir a ter na sustentabilidade do setor e por dois motivos muito simples: 1º, este plano ainda não se concretizou e, por isso, não sabemos como serão usados os fundos europeus; 2º, a discussão sobre a aplicação real dos fundos comunitários é antiga e generosa em exemplos da nossa incapacidade para deles tirar o melhor partido. Veja-se que do pacote previsto para o quadro económico que termina em 2023 apenas 50% foi gasto até ao momento, o que nos deve levar a questionar sobre o que acontecerá de diferente se a negociação em curso resultar em apoios muito necessários, mas mal dirigidos.     
Uma das críticas por parte dos especialistas é que a distribuição das verbas vai privilegiar uma lógica centralista e o poder local vai sair prejudicado.
Sim, não há dúvidas de que os planos de investimento estão sempre muito ligados a questões estruturais e elas fazem-se sentir mais nos grandes centros urbanos, também mais pressionados, o que representa um “amargo de boca” para os restantes. 
Há uma lógica centralista no PRR, quer na reestruturação prevista para o parque habitacional social, maioritariamente localizada em Lisboa e no Porto, quer nas ligações transfronteiriças que servem o país, mas partem das maiores cidades. 
Talvez a única grande exceção a este tipo de política tenha sido o Programa Polis, de Requalificação Urbana e Valorização Ambiental das Cidades, cuja aplicação de fundos europeus abrangeu todo o país. 
 
Outro aspeto tem a ver com o facto de muitos dos concursos de obras serem adjudicados a grupos estrangeiros, como aconteceu recentemente?
Trata-se do mercado a funcionar, e ele é aberto, por isso, temos de mudar de mentalidade e lutar para sermos melhores do que os outros – estamos a concorrer com o resto do mundo e, principalmente, com o mercado ibérico, que tem de passar a ser a nossa referência. 
O nosso “em casa” hoje é ibérico e os últimos anos da crise levaram a alguma fuga de mão de obra qualificada para outros países, técnicos, principalmente, algo que potencia a incapacidade de devolvermos uma resposta mais competitiva. Ainda assim, qualquer obra perdida para concorrentes internacionais representa prejuízo para o país. 
 
Como especialista do mercado, que conselhos deixa às empresas para conseguirem ultrapassar as dificuldades e saírem vencedoras desta fase?  
O momento que vivemos é, sem dúvida, penalizante e não há nenhuma empresa da fileira da construção e do imobiliário que se possa dizer imune a ela ou às suas consequências de longo alcance. Os promotores sofrem porque não conseguem fazer negócios de compra e venda de imóveis e os projetistas também porque muitos dos projetos que tinham para “arrancar” foram colocados em “standby” nos últimos meses. Empreiteiros e fiscalizações continuam a ter obras a decorrer, mas sabem que, se não se realizarem negócios, a cadência das obras e a entrada de novos contratos fica comprometida. 
Julgo que as empresas mais preparadas para ultrapassarem a crise e contribuírem de forma estratégica para a retoma serão as que forem bem-sucedidas no equilíbrio entre a gestão do negócio e a gestão da equipa, garantindo a manutenção dos postos de trabalho e mostrando destreza na construção de oportunidades. As empresas inovadoras e que conseguirem modernizar-se também terão melhores hipóteses de vencer. Até mesmo esta crise tem um prazo de validade, pelo que é importante não serem tomadas medidas precipitadas e pensar-se a médio-longo prazo.
ELISABETE SOARES elisabetesoares@vidaeconomica.pt, 04/12/2020
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