Direito português é robusto quanto à proteção dos consumidores
O Direito português é robusto no que se refere à proteção dos consumidores. No entanto, ainda há um caminho pela frente em termos de melhoria dos níveis de cumprimento dos princípios e das normas de direito do consumo por parte dos profissionais, de acordo com o professor doutor Jorge Morais Carvalho. Quanto a prevenir os conflitos na área do consumo, a grande preocupação terá de ser sempre a informação.
Quais são atualmente os direitos reconhecidos aos consumidores na Constituição e na Lei?
O direito português é bastante robusto no que respeita à proteção dos consumidores. Quer a Constituição quer a lei contêm um conjunto sólido de princípios e de normas adequado à regulação das relações entre consumidores e profissionais.
Ao invés, quais são os direitos que, na sua perspetiva, carecem ainda de previsão legal ou de melhoria substancial?
No essencial, o trabalho a fazer consiste em melhorar os níveis de cumprimento dos princípios e normas de direito do consumo por parte dos profissionais. Nota-se uma preocupação crescente por parte das empresas no que diz respeita ao direito do consumo, mas ainda se assiste a um incumprimento generalizado de algumas normas. Estou a pensar, por exemplo, no regime das cláusulas contratuais gerais, verificando-se uma comunicação e um esclarecimento claramente deficientes das cláusulas, ao contrário do que impõe o respetivo regime legal. Também o regime das práticas comerciais desleais é pouco aplicado na prática, o que não corresponde, infelizmente, à realidade do mercado português, em que há muitas práticas duvidosas para o consumidor. O trabalho a fazer é, portanto, mais no sentido de garantir o cumprimento do conjunto de normas robusto que já temos.
Como prevenir os conflitos na área do consumo?
Informação é a palavra-chave. E deve começar no ensino básico, em todas as disciplinas. Depois, é igualmente importante que consumidores e profissionais sejam esclarecidos de forma apelativa, mas rigorosa, ao longo da vida. Da minha experiência, a falta de informação está na origem de muitos conflitos. Depois, é necessário também que os profissionais sintam que existem consequências para o incumprimento dos princípios e das normas jurídicas. A convicção de que não há sanções ou de que estas têm um valor reduzido leva a que muitas empresas optem pelo incumprimento. Voltando às cláusulas contratuais gerais, comunicar e esclarecer é caro e pouco eficiente, pelo que pode valer a pena não o fazer, sabendo-se que em 99,9% dos casos as cláusulas não serão colocadas em causa pelo consumidor.
Conflitos de consumo
Como é que se poderá atuar nos casos de conflitos de consumo? Sente que existe uma preocupação em promover uma cultura de compliance na área do consumo?
Cada vez existe uma maior preocupação com o direito do consumo nos departamentos de compliance das grandes empresas e nos principais escritórios de advogados, fruto de uma ação mais enérgica da parte de alguns reguladores. É por esta via que se tem potenciado a aplicação prática do direito do consumo. Infelizmente, nem todos os reguladores estão ainda conscientes da importância do seu papel neste domínio. E há um vasto setor do consumo que não é abrangido por regulação setorial. Aí tem sido mais difícil impor o direito do consumo.
Quais são os desafios que o direito do consumo irá enfrentar nos próximos tempos?
O grande desafio dos próximos tempos será a ligação entre consumo e sustentabilidade. As duas áreas estiveram durante muito tempo de costas voltadas. Hoje é claro que um consumo sustentável é fundamental para a proteção do ambiente. E isto faz-se, em muitos casos, à custa de direitos do consumidor. Em caso de desconformidade, a reparação é mais sustentável do que a substituição, pelo que teremos certamente, num futuro próximo, regras que vão restringir o direito do consumidor à substituição. Também o direito de arrependimento nos contratos celebrados à distância poderá ter os dias contados. A compra de roupa e outros bens por impulso, a preços muitas vezes muito baixos, e a sua consequente devolução é desastrosa para o planeta. Por falar em custos baixos, a ligação entre consumo e ética será certamente também um tema para a próxima década. Alguém está certamente a pagar quando se compra por 10 euros uma peça de roupa que vem do Bangladesh.
No período pós-pandemia, considera que o direito do consumo irá sofrer alterações substanciais, nomeadamente com uma extensão do seu âmbito de atuação?
Não prevejo que a pandemia, por si só, tenha um grande impacto no direito do consumo. A crise económica associada, que ainda é difícil de prever, poderá levar a que se retomem assuntos que tinham deixado de ser prioridade, como o tratamento do sobreendividamento. Ainda é cedo, no entanto, para prever os efeitos da pandemia.
Contratação à distância
No período anterior à pandemia discutia-se, com especial ênfase, o tema da contratação à distância e do comércio eletrónico. Contudo, a pandemia veio acelerar exponencialmente esse processo.Nesse sentido, questiono como analisa a evolução desse setor específico e quais as estratégias necessárias para acompanhar esse desenvolvimento?
A pandemia acelerou exponencialmente o processo de digitalização em muitos setores, sendo a contratação um dos mais evidentes. Não me parece, no entanto, que tenha um impacto muito significativo no direito do consumo. Poderá haver uma maior tensão entre a liberdade económica e a proteção dos consumidores, especialmente visível em plataformas digitais. E aqui vai ser importante perceber se queremos limitar a inovação em nome dos direitos dos consumidores, responsabilizando mais as plataformas, ou se os direitos dos consumidores devem prevalecer, sacrificando alguns negócios. É uma questão ideológica e que será interessante seguir nos próximos tempos.
Quais as medidas que necessitam, na sua ótica, de maior implementação para aumentar o nível de proteção do consumidor?
A adoção de medidas para aumentar o nível de aplicação prática da legislação de consumo é fundamental, em especial no que respeita à informação, ao esclarecimento e à lealdade. O cumprimento efetivo dos regimes das cláusulas contratuais gerais e das práticas comerciais desleais é, neste domínio, decisivo. A Diretiva 2019/2161 tem aqui um papel fundamental, ao introduzir novas e mais rígidas consequências para o incumprimento das suas normas. Por exemplo, os valores máximos das sanções contraordenacionais são aumentados significativamente. A transposição deste diploma europeu deveria ser uma prioridade a nível nacional, mas temo que, como noutros casos, não haja a ponderação e cuidado suficientes para garantir uma aplicação futura eficaz dos diplomas em causa.
Ao serem consagrados extensos deveres de informação pré-contratual, designadamente daqueles que se encontram estabelecidos no DL n.º 95/2006, de 29 de maio, no âmbito de contratos à distância relativos a serviços financeiros celebrados com consumidores, de que modo é que tal consagração legal veio contribuir para uma crescente transparência global?
A previsão de deveres de informação pré-contratual é muito relevante em termos de compliance, em especial nos setores objeto de uma regulação eficaz. Do ponto de vista do consumidor, cada elemento de informação que se acrescenta sem se retirarem dois é um contributo para o seu não esclarecimento. O consumidor normal, que usa de comum diligência, não lê – nem lhe é exigível que leia – toda a informação que lhe é transmitida. Muitas vezes os profissionais incluem ainda mais informações, tornando o documento de leitura ainda menos provável, e por isso de leitura menos exigível, nos termos do regime das cláusulas contratuais gerais. O caminho terá de ser o de ser prestada menos informação, mas informação mais relevante.
Os consultores automáticos
A sociedade tem caminhado no sentido de emergirem os consultores automáticos, centrados em robôs e em algoritmos com reduzida intervenção humana ou, em alguns casos, sem intervenção humana. Acha que tal evolução pode aumentar a qualidade da informação prestada, quer em termos formais, quer em termos materiais, centrando-se no que é mais importante para a contraparte?
Sem dúvida. A informação terá de ser cada vez mais personalizada, dirigida a uma pessoa concreta e às suas necessidades. Com o avanço da inteligência artificial, será cada vez mais fácil fazê-lo.
Tendo em consideração as novas regras estabelecidas no DL n.º 84/21, de 18 de outubro, que entram em vigor no dia 01/01/2022, segundo o qual o prazo de garantia dos bens móveis foi alargado para três anos e em relação a defeitos que afetem elementos construtivos estruturais de bens imóveis passou para 10 anos, considera que foram dados passos importantes no sentido de reforçar os direitos dos consumidores?
O novo regime da venda de bens de consumo reforça os direitos dos consumidores em alguns aspetos, mas tem de ser analisado com cautela. Desde logo, parece-me que não se pode falar em garantia. Com efeito, o prazo da responsabilidade do vendedor é alargado para três anos, mas continua a ser de dois anos o período dentro do qual se presume que a desconformidade já existia no momento da entrega. Ou seja, após os dois anos a contar da entrega, o consumidor tem de provar não apenas a desconformidade, mas também que esta já existia no momento da entrega. Esta prova é diabólica e torna o exercício dos direitos mais difícil. Não sendo os dois prazos idênticos, não se pode falar em garantia. Não se garante o bom estado e o bom funcionamento durante três anos, mas apenas durante dois. Em qualquer caso, o aumento dos prazos de responsabilidade é benéfico para o consumidor. Em sentido contrário, passa a existir uma hierarquia entre os direitos que o consumidor pode exercer, o que significa, na prática, que apenas após ser tentada a reposição da conformidade é possível a resolução do contrato. Isto com exceção dos casos em que a desconformidade se manifeste nos primeiros trinta dias. Em geral, talvez por conter algumas soluções estranhas, o diploma levantará muita discussão ao longo dos próximos anos.
Projeto Nova Consumer Lab
Como surgiu o projecto do Nova Consumer Lab e como tem sido a sua evolução até à presente data?
O NOVA Consumer Lab sucede à UMAC (Unidade de Mediação e Acompanhamentos de Conflitos de Consumo), que foi criada através de protocolo celebrado entre a NOVA School of Law e a Direção-Geral do Consumidor (DGC). Na sua origem estiveram duas pessoas com um papel fundamental no direito do consumo em Portugal e que infelizmente nos deixaram este ano: Carlos Ferreira de Almeida e Maria Cristina Portugal. Deixo-lhes aqui a minha sentida homenagem. A UMAC iniciou a sua atividade em 1 de julho de 2001, tendo por objeto essencial a instrução de processos de mediação de conflitos de consumo. Entre setembro de 2008 e setembro de 2020, prestámos serviços de informação e encaminhamento do consumidor através de atendimento telefónico, tendo sido atendidas 78 682 chamadas. Entre março de 2009 e agosto de 2018, prestámos serviços de informação escrita, mediação de conflitos de consumo e arbitragem, enquanto entidade gestora do Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo. No início de 2019, deu-se a mudança de nome e a diversificação das atividades.
Quais as principais atividades desenvolvidas pelo Nova Consumer Lab?
O NOVA Consumer Lab é um polo agregador da atividade desenvolvida em matéria de direito do consumo na NOVA School of Law. As nossas principais atividades estão neste momento ligadas à investigação. Ao longo dos últimos vinte anos, foram apresentadas e defendidas dezenas de teses de mestrado e de doutoramento. Temos uma equipa de 39 investigadores, que publica regularmente artigos em revistas científicas, textos no blog, entrevistas no podcast, entre outras atividades. Realizámos este ano uma grande conferência internacional sobre consumo e sustentabilidade. Fazemos também formação em matéria de direito do consumo.
Quais são as principais marcas diferenciadoras do Nova Consumer Lab em relação aos restantes centros de investigação?
Diria que a nossa principal marca diferenciadora é a equipa e o trabalho em equipa. Temos muitas pessoas muito competentes e empenhadas, cada uma desenvolvendo e participando nas atividades para as quais se sente motivado. Sinto-me muito realizado por coordenar esta equipa.
Considera que o atual quadro legal é suficiente para regular os contratos que resultam da evolução tecnológica e digital em curso, ou, pelo contrário, haverá necessidade de implementar novas regras que devam ser adotadas para regular uma nova realidade?
Julgo que já respondi a esta questão. No essencial, o quadro legal existente é suficiente. É importante que seja efetivamente aplicado.
Considera que o atual período de incerteza em que vivemos, em resultado da pandemia, irá contribuir para uma mudança nas áreas de estudo do Nova Consumer Lab? Em caso afirmativo, questiono quais seriam os novos caminhos a serem adotados?
A pandemia trouxe um aumento significativo da atividade do nosso centro, com o início do blog, do podcast, das talks. É certo que houve muita legislação específica durante os confinamentos em matéria de direito do consumo, mas a principal razão para este aumento foi uma maior vontade de inovar e a descoberta de que a distância não constitui um obstáculo à colaboração e ao trabalho de equipa. Do ponto de vista substancial, o NOVA Consumer Lab está atento a todos os fenómenos ligados ao consumo e ao direito do consumo. Durante o último ano e meio estivemos em cima do acontecimento em relação ao que foi produzido em torno da pandemia e assim nos manteremos. Não antecipo, no entanto, que a pandemia ou os seus efeitos sejam catalisadores de mudança nas nossas atividades. Julgo que as alterações climáticas e os desafios ao nível da sustentabilidade serão o grande tema do direito do consumo nos próximos anos.