Inventário permanente: obrigação ou necessidade da gestão?
Os inventários são ativos[2]:
Detidos para venda no decurso ordinário da atividade empresarial;
No processo de produção para tal venda; ou
Na forma de materiais ou consumíveis a serem aplicados no processo de produção ou na prestação de serviços.
Obrigação de inventário permanente
As entidades a que seja aplicável o SNC, ou as normas internacionais de contabilidade (IAS/IFRS) adotadas pela UE, com exceção das classificadas como microentidades[3], encontram-se obrigadas a adotar o sistema de inventário permanente na contabilização dos inventários[4].
Ficam, no entanto, ainda dispensadas, algumas atividades como:
Agricultura, produção animal, apicultura e caça;
Silvicultura e exploração florestal;
Indústria piscatória e aquicultura;
Pontos de vendas a retalho que, no seu conjunto, não apresentem, no período de um exercício, vendas superiores a € 300 000 nem a 10% das vendas globais da respetiva entidade;
Entidades cuja atividade predominante consista na prestação de serviços, considerando-se como tais as que apresentem, no período de um exercício, um custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas que não exceda € 300.000 nem 20 % dos respetivos custos operacionais.
Esta obrigação não decorre assim de qualquer norma contabilística, como por exemplo a NCRF 18 sobre Inventários, pelo que a não adoção deste sistema, ainda que obrigatório, não pode resultar o afastamento da contabilidade para feitos de tributação em IRC[5].
Sistemas de inventário
Existem dois sistemas de inventários: o intermitente e o permanente.
O sistema de inventário intermitente, ou não permanente, consiste no cálculo do Custo das Vendas através do uso de uma fórmula[6], em que se torna imprescindível a contagem física dos inventários no final do período, normalmente o ano, para a determinação da quantia relativa a existências finais e assim o Custo a imputar ao exercício para balancear com as Vendas do mesmo período.
Este sistema, embora mais eficiente, uma vez que não obriga ao controlo físico periódico dos inventários e o uso de sistemas de gestão de inventários, com os inerentes custos associados, é permissivo a ineficiências do processo logístico e pode deturpar o cálculo do efetivo do custo das vendas, influenciando negativamente a análise feita à formação das margens comerciais.
Para exemplificar, suponhamos que uma empresa apresenta os seguintes dados:
Existências iniciais em armazém: 80.000 (5.000 unidades a um preço unitário de 16 u.m, pelo critério Custo Médio Ponderado - CMP)
Compras do período: 360.000
Regularizações conhecidas (quebras por prazos expirados, ofertas, etc.): 5.280 (300 unidades a 17,6 u.m.)
Contagem no final do ano: 6.000 unidades em armazém, a que foi atribuído o preço unitário de 17,6 u.m. pelo uso do critério de custeio de saída CMP.
Considerando ainda que as Vendas do período ascenderam a 18.000 unidades ao preço unitário de 21 u.m., a empresa apura um Custo das vendas de 329.120 e uma margem de 48.880 (Vendas – Custo das Vendas), que corresponde a 12,9% das vendas.
Unidades |
Preço unitário |
Quantia total |
||
Ei |
5.000 |
16,00 |
80.000,00 |
|
Compras |
|
|
360.000,00 |
|
Quebras conhecidas |
300 |
17,60 |
-5.280,00 |
|
Ef |
6.000 |
17,60 |
105.600,00 |
|
Custo das vendas |
|
|
329.120,00 |
|
Vendas do período |
18.000 |
21,00 |
378.000,00 |
|
Margem apurada |
|
|
48.880,00 |
12,9% |
Contudo, a margem normal esperada para a empresa seria acima dos 15%, o que poderá estar a influenciar a margem?
A empresa concedeu descontos acima do normal?
As compras estão a ser feitas a preços acima do esperado?
Trata-se de questões pertinentes e que obrigarão a uma reflexão da gestão.
Inventário permanente
O uso do inventário permanente exige um sistema de controlo de stocks extra-contabilístico, uma vez que a contabilidade não regista quantidades nem preços unitários, mas tão somente quantias globais de compras e vendas.
Neste sistema, o cálculo do custo das vendas não depende da contagem física no final do período, mas apenas da saída dos inventários, por venda, em quantidade e preço unitário de custo, isto é, as saídas de inventários são registadas com base nas quantidades efetivamente vendidas.
A contagem física serve, no entanto, para identificar as quebras não conhecidas, relacionadas com ineficiências no processo logístico como erros nas unidades, roubos, etc.
Supondo agora que a empresa usa o sistema de inventário permanente, e do qual obteve os seguintes dados:
Existências iniciais em armazém: 80.000 (5.000 unidades a um preço unitário de 16 u.m)
Compras do período: 360.000 (20.000 unidades a 18 u.m.)
Regularizações conhecidas (quebras por prazos expirados, ofertas, etc.): 5.280 (300 unidades a 17,6 u.m.)
Contagem no final do ano: 6.000 unidades em armazém.
Unidades |
Preço unitário |
Quantia total |
||
Ei |
5.000 |
16,00 |
80.000,00 |
|
Compras |
20.000 |
18,00 |
360.000,00 |
|
Quebras conhecidas |
300 |
17,60 |
-5.280,00 |
|
Ef |
6.000 |
17,60 |
105.600,00 |
|
Custo das vendas |
18.000 |
17,60 |
316.800,00 |
|
Quebras não conhecidas |
700 |
17,60 |
-12.320,00 |
|
Vendas do período |
18.000 |
21,00 |
378.000,00 |
|
Margem apurada |
|
|
61.200,00 |
16,2% |
Com base no sistema de inventário permanente, o custo das vendas é apurado periodicamente pela saída efetiva de inventários (18.000 unidades), pelo que a diferença encontrada entre a existência física (6.000) e a registada no sistema de controlo de inventários (6.700 = 5.000 + 20.000 – 300 – 18.000) corresponde a quebras não identificadas e que não devem afetar o cálculo da margem. Estas quebras devem ser registadas como outros gastos (quebras em inventários), permitindo assim identificar o real problema da empresa e que corresponde a ineficiências do processo logístico. É por esta razão que a empresa não está a calcular a margem esperada.
O uso do inventário permanente, quando não seja obrigatório, é uma decisão de gestão que deve ponderar a relação custo – benefício, mas que proporciona informação sobre a eficiência do processo logístico que deve ser tida em consideração no momento da decisão.
Custeio de entrada e de saída de inventários
O custeio de entrada e de saída de inventários é independente do sistema usado. Isto é, a fórmula para o cálculo do custo de entrada, que deve incluir todos os custos de compra[7], custos de conversão[8] e outros custos incorridos para colocar os inventários no seu local e na sua condição atuais, ou de saída dos inventários, como o custo específico, o custos médio ponderado ou o FIFO (“Fist In First Out”), são técnicas usadas pelos contabilistas que não dependem do sistema de inventário usado pela empresa.
Comunicação de inventários
Outro aspeto relevante prende-se com as exigências de natureza fiscal quanto à comunicação de inventários[9], que também é independente do sistema usado na contabilidade para apuramento do custo das vendas. Com efeito, as pessoas, singulares ou coletivas, que tenham sede, estabelecimento estável ou domicílio fiscal em território português, que disponham de contabilidade organizada e estejam obrigadas à elaboração de inventário, devem comunicar à AT, até ao dia 31 de janeiro[10], por transmissão eletrónica de dados, o inventário valorizado[11] respeitante ao último dia do exercício anterior, através de ficheiro com características e estrutura a definidas por portaria[12] do membro do Governo responsável pela área das finanças.
Apenas ficam dispensados desta obrigação as entidades a que seja aplicável o regime simplificado de tributação em sede de IRS ou IRC[13].
Quanto aos prestadores de serviços, e dado que normalmente não têm inventários, ficam também obrigados a comunicar, mas com a indicação de “não têm inventários”.
O papel dos Contabilistas Certificados
Atendendo à necessidade de conhecimentos técnicos e científicos para o cumprimento de certas obrigações, cabe aos Contabilistas Certificados das empresas assegurar a correta aplicação, quer das normas contabilísticas, quer do cumprimento, em nome das entidades obrigadas, das normas fiscais.
A simples comunicação das quantidades em inventários, tal como exigida até 2019, não implicava a necessidade de intervenção do Contabilista, embora esta obrigação já estar incluída nas tarefas correntes dos Contabilistas e nem sempre devidamente valorizadas pelas entidades. Contudo, com a exigência da valorização dos inventários, tornou-se imprescindível a intervenção dos profissionais com qualificações e conhecimentos para a aplicação dos métodos e técnicas necessárias à correta determinação dos preços unitários dos inventários existentes em armazém.
[1] Art. 3.º A do Dec. Lei n.º 198/2012, com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 28/2019, de 15 de fevereiro.
[2] § 6 da NCRF 18 – Inventários;
[3] São classificadas como microentidades as que não ultrapassem, em 2 anos consecutivos, 2 dos seguintes limites: a) Total do balanço: 350.000 euros; b) Volume de negócios líquido: 700.000 euros;
c) Número médio de empregados durante o período: 10
[4] Art. 12.º do Dec. Lei n.º 98/2015, de 2 de junho
[5] Ofício n.º 15161, de 17-12-2015, enviado pela AT – DSIRC à APECA.
[6] Custo da Vendas (CV) = Existências Iniciais (Ei) + Compras +/- Regularizações – Existências finais (Ef)
[7] Incluem o preço de compra, direitos de importação e outros impostos (que não sejam os subsequentemente recuperáveis das entidades fiscais pela entidade) e custos de transporte, manuseamento e outros custos diretamente atribuíveis à aquisição de bens, de materiais e de serviços, deduzido dos descontos comerciais, abatimentos e outros itens semelhantes (§11 da NCRF 18).
[8] Incluem os custos diretamente relacionados com as unidades de produção, tais como mão-de-obra direta e uma imputação sistemática de gastos gerais de produção fixos e variáveis que sejam incorridos ao converter matérias em produtos acabados.
[9] Art. 3.º A do Dec. Lei n.º 198/2012, com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 28/2019, de 15 de fevereiro
[10] Relativamente às entidades que adotem um período de tributação diferente do
ano civil, a comunicação deve ser efetuada até ao final do 1.º mês seguinte à data do termo desse período;
[11] Embora tenham sido publicadas alterações pelo artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 28/2019, de 15 de fevereiro, o Despacho n.º 66/2019-XXII-SEAF, de 13/12, veio determinar que o inventário valorizado só será exigível para as comunicações de inventários relativas a 2020 a efetuar até 31 de janeiro de 2021; entretanto foi publicado o Despacho n.º 437/2020-XXII-SEAF, de 9/11, veio adiar o envio do inventário valorizado apenas para 2021 a efetuar até 31 de janeiro de 2022;
[12] Portaria n.º 2/2015, de 6 de janeiro;
[13] Até 2019 ficavam dispensadas as entidades cujo volume de negócios do exercício anterior ao da referida comunicação não exceda (euro) 100 000.