Portugal está abaixo da Europa em termos de digitalização
Portugal está abaixo da média europeia em termos de digitalização, de acordo com o responsável pela prática de digital customer experience da Capgemini Portugal, Miguel Mancellos. “Apesar de o nosso senso comum nos posicionar muitas vezes, no que respeita à adoção de tecnologia e inovação Portugal, como um ‘early adopter’, a verdade é que, quando nos comparamos com outros países, em estudos relacionados com a maturidade digital, ficamos frequentemente abaixo da média e bastante longe dos países líderes”, avisa o especialista. “Em conjunto, empresas, ONG e Estado têm de trabalhar para construir uma comunidade global e um plano de ação para a inclusão digital”, defende Miguel Mancellos.
Vida Económica – A pandemia teve o condão de acelerar, em definitivo, a importância da digitalização?
Miguel Mancellos – Antes da pandemia era já para todos evidente a importância da internet e do conhecimento digital como fatores de influência económica e social. Com a pandemia, o digital assumiu um papel central na vida, pessoal e profissional, das pessoas e estes fatores tornaram-se ainda mais críticos: o trabalho remoto e as aulas online tornaram-se comuns, a compra de serviços e produtos online passou a ser fundamental, no campo do relacionamento pessoal, as redes sociais e os chats substituíram muitos dos contactos presenciais.
VE – Como é que Portugal compara com outros países em termos de digitalização de empresas (públicas e privadas) e pessoas?
MM – Apesar de o nosso senso comum nos posicionar muitas vezes, no que respeita à adoção de tecnologia e inovação Portugal, como um “early adopter”, a verdade é que, quando nos comparamos com outros países, em estudos relacionados com a maturidade digital, ficamos frequentemente abaixo da média e bastante longe dos países líderes. Um exemplo destes estudos é o “Digital Economy and Society Index”, elaborado pela Comissão Europeia desde 2015, que procura avaliar a competitividade digital dos Estados-Membros e que demonstra que Portugal tem tido alguma dificuldade em descolar-se da cauda da Europa. Com exceção de um bom posicionamento na dimensão dos serviços públicos digitais, continuamos muito atrás nas restantes dimensões, com maior preocupação para as dimensões de capital humano e utilização da internet.
VE – Do lado das empresas, o que levou os empresários a adiarem investimentos?
MM – Depende dos setores, da forma como estes foram afetados pela crise e quais as perspetivas de evolução no curto prazo. No pós-pandemia, muitas das empresas quase que foram “obrigadas” a reinventar-se e, neste sentido, em alguns setores como o turismo e o setor automóvel, entre outros, as preocupações foram mais de sobrevivência, focadas na redução de custos, no manter as operações da forma mais eficiente possível e, consequentemente, a reduzir os investimentos. Outros setores mantiveram os investimentos planeados, e até os reforçaram. Assistimos, por exemplo, a uma aceleração do investimento em soluções na cloud, cibersegurança e no próprio e-commerce.
VE – Agora perceberam em definitivo a importância do digital?
MM – As empresas reagiram; num primeiro momento, a assegurar a continuidade das suas operações, o que em muitos casos significou começar por conseguir colocar os seus colaboradores a trabalhar remotamente, pelo que o trabalho remoto é hoje uma realidade em muito setores. Depois, em muitos casos, começaram a reinventar os seus negócios com recurso à tecnologia; estejamos a falar de pequenos restaurantes que passaram a permitir encomendas online, ou o uso da videoconferência para a realização de consultas no setor da saúde, ou até mesmo da utilização do live streaming para a promoção de produtos e serviços. Se alguns, em setores mais tradicionais, pensavam que a transformação digital não era prioridade, acredito que, e com seis meses de uma realidade disruptiva, entretanto, mudaram de opinião.
VE – Do lado das pessoas, os custos de dispositivos e do acesso à Internet é um obstáculo em estratos sociais e países mais pobres?
MM – O acesso à internet é hoje vital para uma transformação digital (das empresas, da sociedade). Ou seja, não ter acesso à internet e limitações de cultura digital contribui para a exclusão social, limita a mobilidade profissional, dificulta o acesso a serviços (públicos e privados) e inclusive o acesso a serviços de saúde. A Capgemini realizou recentemente um estudo, em vários países europeus e na Índia, junto de pessoas sem acesso à internet. O objetivo do estudo era tentar perceber os fatores que contribuíam para que as pessoas não tenham acesso à internet e identificou o custo, a complexidade e a falta de interesse como as principais razões para as pessoas não utilizarem a internet. O custo (dos serviços de internet e dos dispositivos) destacou-se nos inquiridos entre 22 e 36 anos e, mais acentuadamente, nas populações rurais. Em Portugal, a realidade não é muito diferente ao que ainda se soma uma literacia financeira ainda acentuada; para muitos portugueses, comprar online não é, simplesmente, seguro, sendo a desconfiança um dos principais entraves aos pagamentos online. É ainda preciso notar que apenas em 2019, há pouco mais de um ano, é que passámos a ter os meios de pagamentos mais utilizados em transações digitais a nível internacional, como o Amazon Pay, Apple Pay, Google Pay ou Samsung Pay. Estas são ainda, efetivamente, barreiras ao desenvolvimento e crescimento do e-commerce em Portugal.
VE – O resultado é ainda maior clivagem social entre países e dentro dos países?
MM – Apesar da clivagem entre os países, o estudo foca-se mais nas grandes clivagens sociais dentro dos países, começando pela grande diferença entre as cidades e as zonas rurais. Esta clivagem não resulta apenas dos custos de acesso, mas também da complexidade no acesso e a falta de interesse, que afeta pessoas com incapacidades físicas, com menor escolaridade ou de maior senioridade.
VE – Do ponto de vista do e-commerce, além do à-vontade com as ferramentas e de acesso à tecnologia, a cibersegurança é um problema?
MM – A cibersegurança é um pilar base da economia digital e nesse sentido é fundamental que todas as organizações a incluam na sua estratégia digital. Desta forma, protegem-se e protegem os seus clientes. A criação desta fortificação, combinada com o aumento da cultura digital, são fundamentais para o desenvolvimento do comércio eletrónico.
VE – Ainda no comércio eletrónico, em particular em Portugal, os preços das operações online, num país em que o nível médio de vida é relativamente baixo, dificulta a adoção da realização digital das operações bancárias e de pagamentos?
MM – Embora este seja um tema relevante em qualquer decisão de compra, não surge como uma das principais barreiras ao crescimento do comércio eletrónico, até porque de uma forma geral o preço dos produtos online é mais baixo do que nas lojas físicas. Fatores como a segurança ou a cultura digital têm, neste momento, um impacto mais importante no crescimento das transações online.
Estado tem de trabalhar em conjunto com empresas e ONG
“ O Estado tem um papel fundamental, mas a responsabilidade não se pode limitar ao Estado. As empresas estão a reconsiderar o seu papel no mundo de hoje e este é um tema que tem de estar nas suas agendas – envolvendo os acionistas, os clientes e os fornecedores, levando-os a pensar nos benefícios a prazo da inclusão digital e de colocarem esta prioridade na sua estratégia de negócio. O Estado tem, por sua vez, que liderar a iniciativa e definir ações que promovam o acesso à internet, especialmente nas comunidades mais carenciadas. Isto pode ser alcançado em vários níveis, por exemplo: disponibilização de internet nos locais públicos; facilitar o acesso à internet nas habitações; criar ações de formação/comunicação que desenvolvam as competências digitais, entre outras. Em conjunto, empresas, ONG e Estado têm de trabalhar para construir uma comunidade global e um plano de ação para a inclusão digital”, afirma Miguel Mancellos.
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