O futuro da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia na área do asilo e do regresso de migrantes ilegais*
Bostjan Zalar
Presidente da Associação Internacional dos Juízes para os Refugiados e a Migração - Europa
Introdução
A primeira reação existencialista e fenomenológica do título deste trabalho poderá ser a de que o futuro não existe. No entanto, esta posição de partida quase filosófica dificilmente me poderia afastar de algo com tanta importância nesta ocasião especial. A segunda tentativa para abordar o tema do futuro da Carta tem a ver com o facto de que os juízes, de uma maneira geral, hesitam discutir publicamente certos eventos. Normalmente, o pensamento judicial lida com eventos históricos e o processo legal é essencialmente retrospetivo. Todavia, quando o princípio da persecução, dano grave ou não-repulsão respeita à área do asilo e do retorno de migrantes ilegais, a lei da evidência não é tanto um processo lógico, mas uma espécie de exercício profético sobre o que poderá suceder no futuro, caso um requerente de asilo rejeitado ou um nacional de um país terceiro regresse ao seu país de origem.
Se eu tomar esta referência como uma entonação legítima para este documento, então diria que o futuro da Carta depende dos juízes – particularmente dos juízes de tribunais nacionais dos Estados-Membros. Contudo, tendo os juízes cumprido a sua tarefa nos tribunais nacionais, não é um requisito suficiente para a aplicação efetiva e sustentável dos direitos humanos fundamentais da Carta. Vejo três caraterísticas exigidas a um juiz para esse fim. O primeiro requisito é a coragem inteletual, a segunda é a independência e a terceira, que referirei brevemente neste documento, é alguma abordagem (estratégica) ou conhecimento da lei da União Europeia.
Papel dos juízes nacionais no período inicial da Carta
Porque penso que o futuro da Carta depende, em primeira instância, dos juízes nacionais e não tanto do Tribunal de Justiça da União Europeia ou do legislador da UE? O tribunal e o legislador comunitário já estabeleceram o cenário. O TJUE já desenvolveu a metodologia básica sobre quando e como usar as disposições da Carta relativamente às disposições da legislação secundária da União, à jurisprudência do TEDH e à legislação nacional. Esta metodologia foi aprovada, na sequência de avisos anteriores de advogados, como Jean Paul Jacqué e Lorde Goldsmith. Em 2000, durante a conferência anual de Trier, afirmaram claramente que a Carta nada mudava. Apenas torna os direitos fundamentais mais visíveis.
O eco legal deste aviso precoce pode ser encontrado no artigo 6, nº 1, do TUE e na própria Carta (artigo 52, nº 2). Como tal, o TJUE não teve qualquer possibilidade ou a legitimidade para desenvolver uma interpretação progressiva da Carta. Na minha opinião, da jurisprudência do TJUE, pelo menos nos primeiros cinco anos, a Carta não representa uma ferramenta metodológica importante para a interpretação da lei da União Europeia sobre o asilo e o retorno de migrantes ilegais. De uma maneira geral, nos casos de asilo, as disposições da Carta foram mencionadas apenas nas observações preliminares dos acórdãos ou meramente na parte do raciocínio baseado no argumento que as considerações da legislação secundária da União se referem à Carta. Se existem algumas exceções nesta matéria, como os casos de Y e Z ou NS e ME, acredito que a Carta nesses casos é tomada mais seriamente em conta pelo TJUE, devido à jurisprudência bem definida do TEDH, nos assuntos em debate.
Em relação ao direito processual de asilo, basicamente, a situação era a mesma. O direito de boa administração do artigo 41 da Carta confirma ser apenas o reflexo de um princípio geral prexistente da lei da União Europeia. Penso nos julgamentos de HN (parágrafo 49) e MM (parágrafo 82). O julgamento MM é muito interessante também do ponto de vista de como o TJUE, com a assistência do advogado geral, com sucesso, evitou levar em consideração, neste caso, o direito a um recurso judicial efetivo perante o tribunal, no âmbito do artigo 47 da Carta.
O aspeto em que considero que o TJUE foi longe de mais numa interpretação restritiva da Carta foi a interpretação do direito a uma proteção legal efetiva no julgamento Diouf. Neste caso, o tribunal começou por utilizar uma interpretação ambígua em que o artigo 57 da Carta é um princípio e menos um direito, apesar de o texto do diploma ser claro. O texto da Carta usa o termo “certo” e não “princípio”. A diferença entre “certo” e princípio é substancial, porque, com base no artigo 52, nº 2, da Carta, a lei secundária da União sobre recurso judicial efetivo definiria o direito de proteção judicial efetiva do direito primário do artigo 47 e não o inverso. Consequentemente, o legislador ficaria livre para definir normas processuais, devido a uma proteção judicial eficaz para cada setor da legislação da União Europeia de modo diferente e específica. Assim, os juízes não podem rever a legalidade das regras nacionais (implementando disposições secundárias), tendo em conta o artigo 47 da Carta, por causa da utilização do termo “princípio” e do artigo 52, nº 5, chegando-se à conclusão que a lei secundária define a lei primária e não o oposto.
Esta situação pode ser particularmente problemática, uma vez que, de acordo com a jurisprudência do TJUE, a efetividade enquanto princípio geral da lei da UE significa apenas que “a realização dos direitos conferidos pela União pode não ser possível ou excessivamente difícil”. Por exemplo, no caso específico do asilo, o TJUE, no processo Abdulla e nos casos Y e Z, utiliza a expressão que a avaliação de risco tem de ser sempre realizada com “vigilância e cuidado”. A norma sobre “vigilância e cuidado” é bastante diferente da relativa ao “teste de escrutínio de maior ansiedade”, que é usada na jurisprudência do TEDH, relativamente à não repulsão (artigo 3).
As perspetivas futuras para a Carta, no campo do retorno de nacionais ilegais de países terceiros, parecem ter antecedentes semelhantes. Por exemplo, em decisões preliminares nos casos de detenções desses nacionais no processo de regresso, a Carta não é mencionada pelo TJUE (por exemplo, Kadzoev, El Dridi, Achughbabian, Sagor, Arslan, Pham), apesar de todos estes casos se referirem ao direito de liberdade individual do artigo 6 da Carta, em relação à Diretiva de Retorno 2008/115/EC. As únicas exceções na área da detenção dos nacionais de países terceiros em casos anteriores e em julgamentos no caso de Mahdi, MG e NR. No caso Mahdi, o órgão jurisdicional de reenvio formulou a questão diretamente com os artigos 6 e 47 da Carta. No entanto, o TJUE usou esses artigos apenas para a interpretação que a ordem de detenção tinha de ser “na forma de medida escrita que inclui as razões de facto e de direito para essas decisões”; enquanto para os dois outros importantes elementos sob os pontos dois e três da parte operacional do julgamento Mahdi – que também respeita à supervisão judicial (motivos de detenção e princípio da proporcionalidade) – o TJUE não faz qualquer referência à Carta. No caso MG e NR, o referido tribunal utiliza a Carta na sua argumentação, mas introduz duas normas, que não podem ser tomadas facilmente em conjunto. Por um lado, o TJUE diz que o direito à defesa tem de ser regulado e garantido na ordem jurídica interna, de um modo que os Estados-Membros não o tornem impossível na prática ou excessivamente difícil para executar os direitos de defesa, enquanto, por outro lado, o TJUE apela diretamente ao princípio da proporcionalidade, embora não utilize a referência ao artigo 52, nº 1, da Carta, utilizando antes a jurisprudência do período anterior à vinculação à Carta.
Também se perde a referência à Carta e o direito à vida de família no caso de Zambrano. No caso Dereci, o TJUE alterou ligeiramente a sua abordagem. Nos parágrafos 70 a 74 inclui o direito à vida de família do artigo 7 da Carta, apesar de o tribunal não mencionar esse direito em matéria de regulamentação preliminar. O caso de OS, do mesmo bloco, mostra que depende no texto da diretiva quando uma parte tem um direito subjetivo à reunificação da família e quando os Estados-Membros têm uma margem de apreciação mesmo na aplicação dos artigos 7 e 24 da Carta.
A relevância da Carta noutros tipos de disputas
Podemos afirmar que a situação com a Carta na jurisprudência do TJUE noutras áreas da lei da UE foi a mesmo como nas áreas do asilo e do retorno de nacionais de países terceiros? Nesse período inicial não vi a abordagem do TJUE noutros campos da lei como totalmente comparáveis. Noutras áreas da jurisprudência da União, a abordagem do TJUE pode ser considerada mais progressiva em termos da importância legal da Carta. Por exemplo, no mesmo dia em que a sentença B&D da lei de asilo foi proferida sem qualquer referência à Carta, o TJUE, parte da mesma composição do tribunal, emitiu um julgamento sobre a proteção de dados pessoais que tinha como base uma abordagem bastante diferente. No caso de Scheke, Eifert e Hessen, o referido tribunal refere claramente a proteção de dados pessoais como um direito fundamental. Cita o artigo 8 da Carta e o princípio da proporcionalidade do artigo 52 da Carta. Analisou a validade da regulação relevante da UE, numa perspetiva do artigo 8 da Carta, e apelou ao princípio da proporcionalidade, em ligação com a jurisprudência do TEDH. Neste caso, a metodologia de base da interpretação foi de cima para baixo: a Carta estabelece limites à lei secundária. A mesma abordagem de cima para baixo foi assumida nos casos de DEB, J McB, Test Achats, Digital Rights Ireland Ltd, Google. No entanto, nestes casos, que não se referem ao asilo e retorno de cidadãos de países terceiros, a Carta tem uma importância significativa, em relação próxima da jurisdição bem estabelecida do TEDH, como foi o caso do julgamento de NS e ME, na área do asilo.
Mesmo se tomar como exemplo de comparação o caso Aklagaren/Fransson, que remete para a legislação fiscal da UE, e os casos de Iida ou Zakaria, que remete para a lei da imigração da União, noto que no primeiro caso o TJUE adotou uma abordagem ampla ou progressiva no sentido da aplicabilidade da Carta, enquanto no segundo direciona os juízes nacionais para uma aplicação mais restritiva da Carta.
Papel dos juízes nacionais de asilo e migração num estádio de maturidade de aplicação da Carta
Como juiz nacional, certamente respeito o mencionado estado da arte no chamado período prévio de aplicação da Carta no que respeita ao asilo e ao retorno de nacionais de países terceiros. No entanto, dentro destes limites, penso que está na altura de os juízes nacionais darem a devida atenção à Carta na adjudicação diária de processos. A mensagem, talvez menos visível, em julgamentos como Arslan, Dereci, NS e ME, Zakaria, é que é responsabilidade dos tribunais dos Estados-Membros decidir de acordo com as suas obrigações decorrentes da lei internacional e da União Europeia, os motivos pelos quais os requerentes de asilo podem ser detidos ou mantidos em detenção (Arslan, 56); cabe ao órgão jurisdicional de reenvio examinar se a recusa do direito de residência impede o direito de respeitar a vida familiar e privada do artigo 7 da Carta (Dereci, 72); é dever dos Estados-Membros interpretarem e apelarem à lei secundária da União Europeia de um modo consistente com os direitos fundamentais protegidos pela ordem jurídica da UE ou de acordo com outros princípios gerais da lei comunitária (NS e ME, parágrafos 99 e 77); e, por exemplo, quando a pessoa é impedida de passar a fronteira, cabe ao órgão jurisdicional verificar se a recusa de conceder ao requerente o direito de apresentar as suas queixas perante o tribunal viola os direitos do artigo 47 da Carta (Zakaria, parágrafo 40).
O papel da Carta como uma importante ou decisiva ferramenta para a interpretação da União Europeia tornou-se mais consistente em 2019, com o julgamento pela Grande Câmara do caso Egenberger. Neste âmbito (parágrafo 78), o TJUE decidiu que o artigo 47 da Carta – que estabelece o direito a uma proteção judicial efetiva – “é suficiente em si mesmo e não necessita de se tornar mais específico por disposições da UE ou da lei nacional para conferir aos indivíduos um direito em meramente encaram como tal”. Esta interpretação atual previne um possível entendimento do período anterior da aplicação da Carta que os limites do artigo 47 são definidos pela lei secundária da União. Nesta perspetiva, é menos claro do que vice-versa. O caso Egenberger não se relaciona ao asilo ou retorno de nacionais de países terceiros, mas a mencionada interpretação do artigo 47 da Carta foi confirmada pelo julgamento da Grande Câmara no caso de asilo de Torubarow (parágrafo 56), em julho de 2019. O significado de um direito a uma examinação completa e “ex nunc” de factos e da lei (nova evidência e audição pública) antes dos tribunais de primeira instância nas disputas de asilo é explicado nos casos Sacko, Alheto e Ahmedbekova. Este julgamento deve ser lido em conjunto com a interpretação do TJUE sobre o direito de ser ouvido no caso Boudjlida (ver parágrafos 52 a 57), de 2014.
Relação entre a lei da UE, da lei nacional e da convenção europeia dos direitos humanos
Os juízes nacionais na União estão dependentes apenas da Carta e da lei secundária da UE quando implementam a lei comunitária? Não, de forma alguma. Os juízes dos Estados-Membros têm de conjugar as três fontes legais: a Carta em relação com a lei secundária, o caso de justiça do TEDH e as normas constitucionais nacionais que providenciam que as ações do Estado-Membro não são totalmente determinadas pela lei da UE no caso em apreço. Isto é, provavelmente, mais frequente na lei processual, devido ao princípio da autonomia processual dos Estados-Membros, mas também pode suceder na lei material. Por exemplo, o caso Melloni, que se refere ao “European Arrest Warrant”, mostra que as ações relacionadas com a disposição particular do artigo 4(a)(1) do quadro de decisão são inteiramente determinadas na lei secundária da UE e foi por isso que o TJUE não permitiu ao Tribunal Constitucional espanhol incorporar os princípios constitucionais no processo de adjudicação. No caso mais recente de Jeremy F., em que uma outra questão sobre julgamento justo em relação ao “European Arrest Warrant” foi referida pelo Conselho Constitucional francês, o TJUE decidiu que a decisão modelo não impede um Estado-Membro de recorrer às regras constitucionais, relativamente ao efeito suspensivo de apelação.
As oportunidades para combinar as disposições da Carta com o articulado do TEDH e com as normas constitucionais dos Estados-Membros pode contribuir para uma melhor proteção dos direitos humanos na Europa – sob a condição que os tribunais nacionais vão utilizar essa oportunidade na prática diária, porque se os padrões constitucionais são mais elevados do que os da Carta ou do TEDH, então o tribunal deverá apelar às normas constitucionais, sob a condição que o julgamento Aklagaren/Fransson (parágrafo 29), que o nível de proteção disponibilizado pela Carta, como interpretado pelo TJUE, e a primazia, a unidade e a efetividade da lei da UE não ficam comprometidas. Se tal acontecer de facto na realidade, vai conduzir, inevitavelmente, a um maior poder dos tribunais nacionais – a mais poder dos baixos tribunais aos altos, o que pode ser o caso em várias partes da Europa, onde existe menos meritocracia na promoção e designação de elevados rankings de juízes e até a um maior poder ou aumento de influência dos tribunais constitucionais nacionais, relativamente ao TJUE. Por exemplo, o Tribunal Constitucional austríaco incorporou a Carta na lei constitucional, o que significa que o estatuto nacional pode ser revisto pelo Tribunal Constitucional, tomando como ponto de partida que a Carta preveja que os direitos da Carta correspondam aos direitos da Constituição austríaca. O Supremo Tribunal Administrativo da Bulgária suspendeu a aplicação da legislação nacional, invocando o artigo 47 da Carta, em relação ao direito de se ser publicamente ouvido em casos de detenção de nacionais de países terceiros. O Tribunal Constitucional da Bélgica, em novembro de 2011, usou a Carta relativamente ao direito de audição e extensão da detenção, apesar do facto do caso não ter sido designado para implementação da lei da União Europeia.
Conclusão:
Um controverso filósofo esloveno, Slavoj Zizek, diz: “A minha tarefa não é dar respostas, mas colocar a pergunta certa.” Se o parafrear nesta ocasião, a questão correta não é: “Qual é o futuro da Carta na área do asilo e da imigração? A questão correta talvez seja a seguinte: são os princípios da autonomia, da supremacia e da hierarquia da lei da União Europeia suficientemente princípios funcionais para o benefício da regra da lei e da proteção dos direitos humanos na Europa ou esses princípios talvez necessitem de reconsiderações mais sofisticadas, no sentido de se conseguir diálogos judiciais mais sensíveis e equilibrados entre o TJUE, o TEDH e os tribunais nacionais, com base no artigo 267 do TFEU e o protocolo 16 do TEDH?
*Esta é uma contribuição revista e atualizada que o autor apresentou na Conferência da Universidade de Leiden (“O uso da Carta da UE dos Direitos Fundamentais na Lei da Imigração e do Asilo”), em outubro de 2014, em Leiden (Holanda).