Proteção internacional – evolução
Mónica d’Oliveira Farinha
Presidente da direção do CPR
Apesar de o conceito de asilo ser antigo, a noção atual desenvolveu-se fundamentalmente ao longo do século XX.
De uma perspetiva estritamente nacional, no âmbito da jurisdição interna de cada Estado, dominada pelo princípio da soberania, foi surgindo a noção de que a questão dos refugiados diz respeito à comunidade internacional, devendo ser tratada no âmbito da cooperação. Trata-se de garantir proteção, fundada no direito internacional, como um substituto temporário a falhas na proteção nacional.
Assim, se existem refugiados desde sempre, o reconhecimento da proteção internacional decorre do impacto de acontecimentos que tiveram lugar durante a primeira metade do séc. XX: as Guerras nos Balcãs (1912-1913), a IGM (1914-1918), a Guerra no Cáucaso (1918-1921), a Guerra Greco-Turca (1919-1922), a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e a IIGM (1939-1945).
Perante as terríveis consequências da IIGM, não é de estranhar que as Nações Unidas tenham considerado o tema dos refugiados como assunto prioritário na agenda da 1ª Assembleia Geral, em 1946(1). Era fundamental abordar a questão, quer numa perspetiva institucional, quer numa perspetiva jurídica. Que entidade poderia prestar apoio a esta população? Quem deveria ser reconhecido como refugiado?
A resposta surgiu com o ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados(2), criado em 1950, e com a Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951.
Todavia, a discussão em torno da criação do ACNUR não decorreu num ambiente predominantemente humanitário. Pretendia criar-se, no âmbito das Nações Unidas, uma organização internacional com o mandato de proteger os refugiados, mas que não constituísse uma ameaça à soberania, nem um fardo financeiro para os Estados e promovesse a estabilidade regional e internacional, evitando que aquela população fosse causa de tensão. Acresce que o relacionamento dos principais atores se caraterizava já por divergências de ordem política, jurídica, filosófica e económica, que viriam a dar lugar ao período da “Guerra Fria” e dominar as relações internacionais nos anos seguintes.
A Convenção de Genebra de 1951(3) (CG51) é reconhecidamente o instrumento universal de proteção a refugiados, estabelecendo a sua definição: “Qualquer pessoa que, receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em determinado grupo social ou das suas opiniões políticas, não possa, ou não queira pedir proteção daquele país”, princípios fundamentais para a sua proteção e os seus direitos.
O grande número de ratificações da CG51 (145 Estados), bem como o seu impacto em instrumentos regionais e legislações nacionais, ao longo dos últimos 60 anos são dois factores determinantes da força e relevância deste instrumento.
Naturalmente, quer o ACNUR quer a CG51 têm vindo a evoluir.
Hoje em dia, o ACNUR carateriza-se pela amplitude de operações e diversificação de parceiros e de beneficiários, prestando assistência a 68,5 milhões de pessoas(4).
De igual modo, as últimas décadas têm testemunhado alterações no perfil dos refugiados. Se à época da redação e aprovação da CG51 foi fortemente marcada por um contexto histórico específico (final da IIGM, movimentos massivos de pessoas e antevisão da Guerra Fria), verifica-se recentemente o alargamento da amplitude geográfica dos fluxos, a diversificação de formas e agentes de perseguição e o alargamento dos fundamentos invocados para a necessidade de proteção internacional.
Esta diversificação tem posto à prova a flexibilidade da definição de refugiado da CG51, questionando-se, em alguns setores, a sua capacidade para dar resposta às necessidades de proteção atuais.
Todavia, a definição de refugiado tem demonstrado adaptabilidade para abranger situações que não foram previstas em 1951, nomeadamente perseguições com base no género e na orientação sexual/identidade de género. Assim, apesar de eurocêntrica e decorrente de um contexto muito específico, a CG51 consegue ainda, através de interpretação integrada com outros instrumentos, nomeadamente instrumentos do Direito Internacional dos Direitos Humanos, Direito Internacional Humanitário e Direito Internacional Penal, responder às questões que se colocam atualmente, constituindo uma solução de consenso generalizado que deve ser preservada.
Desde 1951 que a CG salva vidas, sendo por isso reconhecida como um dos instrumentos mais relevantes de direitos humanos.
Tal não significa que não subsistam desafios. Contudo, as respostas não dependem exclusivamente da atuação do ACNUR, que não pode trabalhar isolado, residindo também no âmbito da cooperação regional e internacional, nos Estados de acolhimento, de 1º asilo, Estados geradores de refugiados, noutras organizações internacionais, nas organizações não governamentais, na sociedade civil, na participação dos refugiados, ... É assim necessária uma abordagem integrada da proteção internacional.
Com efeito, a área da distribuição e repartição da responsabilidade entre Estados é provavelmente uma das principais lacunas do sistema de proteção internacional.
De igual modo, a proteção não pode ser entendida como um conceito estanque, devendo abranger, para além do estatuto de refugiado e da proteção subsidiária(5), outras situações que como tal deverão ser reconhecidas, nomeadamente a reinstalação, os mecanismos de solidariedade(6), o reagrupamento familiar, os vistos humanitários e académicos.
A história da proteção internacional acompanha a história do séc. XX e é sobretudo uma história de violações de direitos humanos. Aqueles que fogem dos seus países de origem fazem-no precisamente porque os direitos humanos estão ameaçados ou são sistematicamente violados.
É assim fundamental garantir que o cerne da proteção internacional sejam os direitos humanos e a cooperação internacional, em coexistência, de forma sustentável e equilibrada, com o direito dos Estados a controlar as suas fronteiras e com as suas políticas – para que não se cometam os erros históricos do passado.
O atual sistema de proteção tem de evoluir neste sentido, para garantia daqueles que são hoje perseguidos e daqueles que desconhecem que o virão a ser – na essência, qualquer um de nós.
Notas:
1. Significativamente, o direito de asilo foi também incluído na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948 (artigo 14º).
2. https://www.unhcr.org/
3. http://www.refugiados.net/cid_virtual_bkup/asilo1/conv_0.html
4. https://www.unhcr.org/statistics/unhcrstats/5b27be547/unhcr-global-trends-2017.html
5 Cfr. Alínea x do número 1 do artigo 2º e artigo 7º da Lei 27/2008, de 30 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei 26/2014, de 5 de Maio (Lei do Asilo).
6.Como sucedeu na União Europeia através da Agenda para a Migração - https://ec.europa.eu/home-affairs/what-we-do/policies/european-agenda-migration_en, https://ec.europa.eu/home-affairs/sites/homeaffairs/files/what-we-do/policies/european-agenda-migration/20190306_com-2019-126-report_en.pdf