Regularizações do estatuto do estrangeiro – de alteração em alteração, um direito em expansão
Ana Rita Gil
Professora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa
Professora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa
Desde o Pacto de Imigração e Asilo de 2008, a União Europeia tem instado os Estados-Membros a absterem-se de adotar as chamadas “regularizações em massa de estrangeiros”. Por seu turno, se a jurisprudência internacional previa algumas exceções alicerçadas na necessidade de proteção de direitos humanos, não deixava, ainda assim, de afirmar que o conceito de direito à regularização era, em si mesmo, paradoxal.
Em contracorrente, a Lei dos estrangeiros portuguesa tem vindo paulatinamente a ampliar a possibilidade de regularização do estatuto de cidadãos estrangeiros. Se o artigo 122.º prevê regularizações justificadas pela proteção de direitos fundamentais, já os artigos 88.º e 89.º, referentes à regularização para efeitos de atividade profissional dependente e independente, constituem verdadeiras opções de política de imigração, existentes desde a versão originária da lei.
As alterações posteriores vieram confirmar e alargar tais opções. A Lei n.º 59/2017, de 31 de julho, veio introduzir uma profunda alteração no sentido dessas disposições, fazendo com que, nesses casos, as mesmas passassem a consagrar verdadeiros direitos subjetivos. Com efeito, a redação das normas deixou de prever qualquer margem para critérios de oportunidade, ao decretar objetivamente a dispensa de visto para obtenção de autorização de residência ao estrangeiro que cumpra determinadas condições. Por outro lado, tal alteração ultrapassou contradições constantes do anterior regime e que levavam à sua própria inaplicabilidade. Desde logo, eliminou-se a necessidade de prova da relação de trabalho subordinada, dificilmente compatível com a proibição de emprego de cidadãos estrangeiros em situação irregular. A nova redação da alínea a) do n.º 2 do artigo 88.º basta-se agora com a apresentação de promessa de contrato de trabalho. Se se eliminou a contradição, não deixa de ser verdade que a nova solução legal poderá abrir a porta a novas atividades ilegais, como a “venda” de falsas promessas de contrato de trabalho e o auxílio à imigração ilegal. Por outro lado, eliminou-se o requisito que, algo paradoxalmente, exigia que os requerentes se encontrassem já em situação regular no território. Desta estranha exigência fazia a Administração uma interpretação abrogatória mas de uso discricionário. A nova lei veio, pois, neste ponto, contribuir para a segurança e certeza jurídicas dos interessados.
Atualmente, pois, a lei garante o direito subjetivo à regularização, para efeitos de atividade profissional dependente, a quem: a) possua um contrato de trabalho, promessa de contrato de trabalho ou uma relação laboral comprovada; b) tenha entrado legalmente em território nacional; e c) esteja inscrito na segurança social, salvo os casos de promessa de contrato de trabalho.
Com a manutenção da exigência de entrada legal visou-se evitar o designado “efeito chamada”, o auxílio à imigração ilegal ou mesmo o tráfico de pessoas. No entanto, no corrente ano foi aprovada mais uma alteração, passando o n.º 6 deste artigo a determinar que se “presume a entrada legal sempre que o requerente trabalhe em território nacional e tenha a sua situação regularizada perante a segurança social há pelo menos 12 meses” (Lei n.º 28/2019, de 29 de março). Quem entrou clandestinamente no nosso território passa, pois, a ter a possibilidade de beneficiar de um direito subjetivo à regularização passado um ano.
Apesar de as sucessivas alterações à lei de estrangeiros nesta matéria responderem, sem dúvida, a graves privações de direitos de camadas cada vez mais numerosas da população, elas não deixam, porém, de colocar algumas questões. Desde logo, preocupa-me o “efeito chamada”, relacionado não só com o perigo de incremento de auxílio à imigração ilegal, como ainda com as dificuldades de acolhimento de um Estado que pretende garantir a todos os que residam no seu território um nível de vida correspondente à dignidade humana. Por outro lado, são conhecidas as dificuldades práticas que os sucessivos alargamentos de possibilidades de regularização têm criado, como longos períodos de espera por parte dos requerentes, após as legalmente chamadas “manifestações de interesse” junto do SEF, que dão início ao procedimento de regularização.
Ainda assim, alheio a todas estas preocupações, o Parlamento aprovou, na generalidade, um projeto de lei para a regularização de imigrantes sem documentos legais, mas que trabalhem ou vivam em Portugal em permanência desde julho de 2015. A iniciativa estipula ainda a concessão de autorização de residência provisória a quem, tendo requerido a regularização, aguarde decisão final.
A adoção deste regime, embora se possa fundar em motivos atendíveis, não deixa de agravar algumas das dificuldades que já persistiam à luz dos outros alargamentos. Tenho dúvidas em relação a processos de regularização em massa que, por não corresponderem a direitos fundamentais, no meu entender, apenas poderão ser usados em casos excecionais e apenas quando as reais capacidades de acolhimento do país e as condições funcionais dos serviços o permitam. As mesmas deverão ainda ser acompanhadas de cláusulas e mecanismos destinados à prevenção de abuso do sistema, sob pena de se criarem mais situações de instabilidade social e de insatisfação de camadas da população que, tendo os direitos legais, tardem a ver os mesmos satisfeitos.
Em suma, neste domínio sensível, as escolhas legislativas têm de se pautar por um equilíbrio permanente entre a garantia da dignidade de quem escolheu viver no nosso país, as capacidades reais de acolhimento e de funcionamento do sistema, e ainda a prevenção de crimes que levem à exploração dos mais vulneráveis.