Competências e atuação dos juízes em matéria de estrangeiros
Ana Celeste Carvalho, Juíza Desembargadora no Tribunal Central Administrativo Sul, perita externa da Comissão Europeia em Matéria de Acesso à Justiça Administrativa, Vice-Presidente do Conselho de Arbitragem Desportiva do Tribunal Arbitral do Desporto e Ex-Ponto de Contacto Nacional na Agência Europeia de Asilo (European Asylum Support Office), aborda as competências e a atuação dos juízes administrativos na matéria dos estrangeiros, em especial no tocante aos processos de aquisição da nacionalidade portuguesa e de asilo.
Qual a área de atuação dos juízes administrativos nos processos relacionados com os estrangeiros?
Em Portugal, tal como na maioria dos países europeus, a competência jurisdicional atinente à condição e situação dos estrangeiros é repartida entre vários tribunais, consoante a matéria sobre que verse.
Do mesmo modo, a anteceder a instauração do processo em tribunal, existem várias entidades públicas que têm competência para intervir, desde a Conservatória dos Registos Centrais, nos processos de aquisição da nacionalidade portuguesa, ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, nos processos de asilo e relacionados com o estatuto de refugiado e à autorização de residência em território nacional, ou ainda o Ministério dos Negócios Estrangeiros, em relação à concessão de vistos ou ao reagrupamento familiar.
Especificamente sobre todas estas matérias a competência jurisdicional é dos tribunais administrativos, por estarem em causa relações jurídico-administrativas, regidas pelo direito público e em que o interessado dirige uma pretensão ao Estado português.
Do mesmo modo que também são da competência dos tribunais administrativos os processos relacionados com os mais variados tipos de vistos ou de autorizações de residência em Portugal, seja por razões médicas, do ensino por alunos estrangeiros, para a prática desportiva, para investigação científica, entre outros.
Mais frequentes, porém, são os processos referentes à oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa e os relacionados com a concessão do estatuto de refugiado ou com o direito de proteção subsidiária, relativo à autorização de residência por razões humanitárias.
Embora os regimes legais em causa não sejam todos recentes no ordenamento jurídico nacional, a atualidade ditada pelos movimentos migratórios em larga escala e a maior mobilidade dos cidadãos têm exigido quer várias alterações legislativas, quer uma maior capacidade de resposta por parte dos tribunais administrativos.
“Muita desta legislação tem por base o direito europeu e o direito internacional, pelo que, é exigível ao juiz administrativo a interpretação e aplicação do direito nacional à luz das diretivas e regulamentos europeus, assim como das Convenções internacionais ratificadas por Portugal, com especial destaque para as diretivas e regulamentos na matéria do direito de asilo e do reagrupamento familiar e da Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, na matéria do asilo. Além disso, carecem as decisões judiciais portuguesas de se harmonizar com a jurisprudência emanada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sobre todas estas matérias.
No entanto, deixe-me dizer que, no que respeita aos processos de aquisição da nacionalidade portuguesa, nem sempre foi assim, pois no passado essa competência estava atribuída aos tribunais comuns.
“Seguindo a tendência que tem existido nos últimos anos, tem existido um alargamento da competência material dos tribunais administrativos, quer por transferência da competência de outros tribunais, quer pela atribuição ex novum de novas competências.”
No primeiro caso incluem-se os processos de aquisição da nacionalidade portuguesa, que começaram por integrar a competência jurisdicional dos tribunais comuns, mas que foi atribuída aos tribunais administrativos por força de uma alteração legislativa ocorrida em 2006, pelo Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de dezembro (artigo 55.º, n.ºs 2 e 3), que aprova o Regulamento da Nacionalidade Portuguesa.
Tais processos também exigem a intervenção processual do Ministério Público, a quem cabe, em representação do Estado português, instaurar as ações de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, por considerar que o cidadão estrangeiro não reúne os requisitos legais para ser português.
Embora sejam processos que tecnicamente não são muito difíceis, são muito numerosos, exigindo do juiz administrativo uma grande atenção em relação ao julgamento da matéria de facto, que é sempre particular e distintiva de caso para caso.
Além de que assumem grande relevância, por dizerem respeito a um dos fatores de soberania nacional, como a nacionalidade portuguesa.
Na verdade, a decisão judicial que venha a ser proferida, negando provimento à oposição deduzida pelo Ministério Público e reconhecendo a verificação dos requisitos para a concessão da nacionalidade portuguesa, reveste a importância de produzir toda uma multiplicidade de efeitos jurídicos, quer civis, quer políticos, não apenas com grande impacto direto na vida dessa pessoa, mas também, a vários níveis, para o próprio Estado português.
Outro fenómeno no panorama judiciário administrativo são os processos instaurados pelos requerentes de asilo e de proteção subsidiária, pretendendo o reconhecimento do estatuto de refugiado ou, caso não reúna os requisitos legais para tanto, a autorização de residência em território nacional por razões humanitárias.
Embora há muito os tribunais administrativos detivessem competência jurisdicional para julgar este tipo de litígios, no passado as situações que se colocavam eram relativas a outro tipo de asilo, o asilo político, relacionado com a ameaça ou risco de perseguição por razões políticas.
Nestes últimos anos, o drama humanitário relacionado com os fluxos migratórios ditaram, porém, o aumento do número de processos nos tribunais administrativos relativos aos requerentes de asilo e de autorização de residência.
Sem que a nossa realidade possa ser comparada à de outros países europeus, ccomo a Grécia, a Itália ou a Alemanha, também entre nós tem vindo a aumentar a procura ao sistema de justiça.
Noutros países, essa procura para este tipo de processos foi e ainda é de tal ordem que justificou a criação de tribunais especializados de asilo ou a criação de seções especializadas.
Pode dizer-nos se é elevada a taxa de sucesso nesses processos?
A resposta a esta questão exige um pequeno enquadramento prévio, sob pena de ser mal compreendida.
É sabido que, por força da integração de Portugal no espaço Schengen, não existe controlo das fronteiras terrestres, pelo que o controlo da entrada de estrangeiros em território nacional é feito, sobretudo, na zona internacional dos aeroportos nacionais, de cidadãos que pretendem entrar em território por via aérea.
O que significa que nos casos irregulares detetados, algumas vezes, os estrangeiros não cheguem a entrar em território nacional, limitando-se à zona internacional do aeroporto. Sendo proferida decisão de recusa de entrada em território nacional por variada ordem de razões, em muitos casos ela não é aceite, antes impugnada pelo estrangeiro, sendo então deduzido pedido de asilo, não apenas quando o interessado reúne as respetivas condições, mas também como forma de protelar à decisão da sua expulsão do território nacional.Porém, noutros casos, a decisão de recusa de entrada em território nacional não é aceite, antes impugnada pelo estrangeiro, sendo deduzido pedido de asilo, não apenas quando o interessado reúne as respetivas condições, mas também como forma de protelar à decisão da sua expulsão do território nacional.
Por isso, a taxa de sucesso nos processos de asilo não é muito grande, porque, algumas vezes, esses processos são instaurados unicamente como forma de obstar à decisão de recusa ou mesmo de expulsão do território nacional por quem não reúne os requisitos legais para poder beneficiar do estatuto de refugiado.
Em muitos casos, essas pessoas são refugiadas de facto, porque se deslocaram efetivamente dos países de que são nacionais ou tinham a sua residência habitual, mas sem que reúnam os requisitos para que, face à luz do direito nacional, europeu e internacional, lhes seja concedido o estatuto de refugiado.
Por isso, os processos relativos ao direito de asilo e ao reconhecimento do estatuto de refugiado que são instaurados nos tribunais administrativos não obtém uma grande taxa de sucesso, porque em muitos casos os requerentes da proteção internacional não reúnem os requisitos legais previstos.
Esse estatuto apenas pode ser concedido aos estrangeiros perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência de atividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, ou ainda aqueles que, em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social, não possam ou, por esse receio, não queiram voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, o que não tem sido muito frequente.
O que significa que muitos dos processos que chegam aos tribunais administrativos não são verdadeiros casos de asilo, antes se tratando de situações de migração por razões económicas, em que cidadãos estrangeiros se deslocam para o território nacional, umas vezes com a intenção de passar a residir em Portugal, outras vezes, como mera porta de entrada para a Europa e com a intenção de se deslocar para outro país europeu.
Donde não serem muito expressivos o número de casos que nos tribunais administrativos é acolhido o direito à proteção internacional de asilo, não porque os tribunais administrativos não queiram conceder essa proteção, mas porque em muitos casos não se verificam os respetivos requisitos legais.
Embora se compreenda que as graves dificuldades económicas e de vida por que passam essas pessoas justifique plenamente a sua vontade de procurar melhores locais para viver, trabalhar ou educar os seus filhos, as razões económicas em si mesmas não constituem fundamento legal de asilo ou para a concessão do estatuto de refugiado, podendo, consoante as demais circunstâncias, servir de fundamento para a autorização de residência por razões humanitárias.
Em qualquer caso, são sempre grandes dramas humanos que estão em causa, pois por detrás de cada processo há sempre um rosto e uma vida e isso é claramente a maior exigência que se coloca ao juiz quanto à decidir de acordo com a lei, mas também com sentido de justiça.
Esse constitui, de resto, um dos grandes desafios das políticas europeias de asilo, em encontrar soluções políticas globais para os fenómenos migratórios em larga escala.
Sobretudo, de que países são provenientes os interessados?
Naturalmente, difere consoante estejamos a falar dos processos de aquisição da nacionalidade portuguesa ou dos processos de asilo.
No primeiro caso são sobretudo os países de língua oficial portuguesa, com quem Portugal tem relevantíssimas relações históricas, sobretudo o Brasil, Cabo Verde, Angola e Moçambique, sendo residuais outros países.
O caso do Brasil ganha grande destaque, por via da aquisição da nacionalidade portuguesa por naturalização, em consequência da descendência em relação a outros nacionais portugueses, mas também através do casamento com um nacional português, pelo estabelecimento da relação de ligação efetiva ao território nacional.
No caso dos nacionais de países africanos, muitas vezes já se encontram a residir em Portugal e têm cá a sua vida familiar, de trabalho ou mesmo escolar estabilizada.
Não sendo muito comum conceder a nacionalidade portuguesa a cidadãos menores de idade, por a maior dos casos dos processos instaurados se relacionarem com adultos, relembro um caso que decidi, relativamente a uma jovem menor de idade proveniente de um país africano, a residir com o pai, português, em Portugal já há alguns anos, em condições económicas adversas, mas que apresentava resultados escolares muito favoráveis e promissores e a quem concedi a nacionalidade portuguesa, sabendo que isso iria contribuir decisivamente para a sua plena integração na comunidade nacional e, porventura, tornar mais facilitada toda a sua vida futura no nosso país.
Já no caso dos processos relativos aos novos refugiados, eles são das mais diferentes proveniências, mas, na sua maioria, de países do Médio Oriente e de certas zonas da Ásia e de vários países africanos, sobretudo aqueles que enfrentam graves conflitos armados em que a proteção dos direitos humanos não é uma realidade, com destaque para a Síria, o Paquistão, o Afeganistão, a Serra Leoa, a Gâmbia, entre tantos outros.
Da América recordo um único processo e, neste caso, claramente distintivo, por se tratar de uma família inteira que se encontrava sob proteção internacional do Alto Comissariado para as Nações Unidas (ACNUR), em consequência de um dos seus membros, uma filha ainda jovem, ter sido raptada pela FARC e mantida durante vários meses sob tratamento humano degradante. Essa família foi retirada da Colômbia e colocada a viver, sob identidade falsa, noutros países da América Central e do Sul, mas, ainda assim, sob invocação do receio de perseguição, decidiram por si só sair do continente americano e vir para Portugal.
Esse caso estava a ser devidamente tratado pela ACNUR quando decidiram viajar por si para Portugal, pelo que, as autoridades nacionais portuguesas, com razão, levantaram um conjunto de obstáculos à entrada dessas pessoas em território nacional, com o fundamento de não estar demonstrado que o país da residência, que à data era o Brasil, não oferecia suficientes garantias de proteção.
São muitas as histórias de vida com que tomamos contacto e que vamos guardando na nossa memória ao longo dos anos.
Tem sido comum ouvir-se na comunicação social que Portugal tem adotado uma política amiga da migração. Concorda com esta ideia?
O que conheço do trabalho político que o Estado português tem desenvolvido na matéria dos refugiados é apenas como cidadã interessada e atenta, que tenta acompanhar a notícia nacional e estrangeira.
No entanto, a experiência que tenho tido no estrangeiro, quer considerando a minha anterior qualidade de Ponto de Contacto Nacional na Agência Europeia de Asilo durante cinco anos, quer resultante da participação em importantes fóruns de debate europeu e internacional sobre a matéria do direito europeu de asilo, fui assistindo e testemunhando a imagem externa que existe em relação ao nosso país.
Recordo que, já em 2013, num fórum realizado na Áustria, um importante membro húngaro de uma Organização Não Governamental para defesa dos direitos humanos, que desenvolve o seu trabalho em vários continentes, se referia ao nosso país como oferecendo excelentes condições de acolhimento dos refugiados, pois já as tinha visitado, referindo-se ao nosso país em termos muito elogiosos.
Também é pública a disponibilidade do Estado português em matéria de recolocação de refugiados, enquanto política europeia que visa aliviar os países europeus com maior pressão migratória.
Ao contrário de outros países europeus, que estão mais próximos de países a sofrer conflitos armados e crises humanitárias graves e por isso, sentem grande pressão migratória, como Itália e Grécia, a localização geográfica portuguesa, com um pequena fronteira terrestre como porta de entrada, para além da própria distância geográfica em relação a esses países, não cria tanta pressão no nosso país, pelo que, temos sido mais poupados a esse flagelo humanitário.
No entanto, Portugal tem uma longa tradição em matéria de defesa dos direitos humanos, que é reconhecida internacionalmente, cujos exemplos são muitos, mas com grande destaque para a causa de Timor Leste.
Equaciona como desejável a criação de tribunais administrativos especializados para estas matérias em Portugal?
A especialização dos tribunais administrativos é algo que neste momento integra a política governativa, visto recentemente ter sido aprovada uma Proposta de Lei que, visando a alteração do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, pretende criar juízos especializados em função da matéria nos tribunais administrativos, a qual se encontra na Assembleia da República para discussão e aprovação e que se espera que venha a ser uma realidade muito em breve, antes do final da presente legislatura.
Não está prevista a criação de um juízo especializado para a matéria dos estrangeiros e penso que atualmente tal não se justifique.
Embora estejamos novamente a viver uma vaga de imigração brasileira, que vai ter os seus reflexos nos processos de aquisição da nacionalidade portuguesa, com pressão para os serviços públicos e depois, numa segunda linha, para os tribunais administrativos, parece-me que não será de molde a justificar essa especialização no seio da Jurisdição Administrativa e Fiscal.
Poderá a situação evoluir, mas atualmente, considerando, por um lado, o volume processual e também a disponibilidade de juízes administrativos, que não são em grande número, parece-me que não se justifica essa especialização.
Recordo que, no passado recente, por exemplo, na Alemanha, existiu um recrutamento especial de mais de mil juízes administrativos só para a competência exclusiva dos processos de asilo e dos refugiados, mas tal não tem tradução na realidade portuguesa quanto ao número de processos entrados, sendo realidades muito diferentes.
Por isso, existindo diversos países europeus que contam com tribunais ou seções especializadas para estas matérias, penso que estamos longe dessa realidade.
Também importa referir que as alterações legislativas que têm vindo a ser introduzidas na política da nacionalidade, em relação à qual o legislador nacional dispõe de grande margem de liberdade, por dizer, sobretudo, respeito a opções de política nacional – ao contrário do que se verifica, por exemplo, em relação ao direito do asilo e dos refugiados e, mesmo ao direito ao reagrupamento familiar, fortemente influenciadas pelo direito europeu –, têm sido em sentido ampliativo ou facilitador da concessão da nacionalidade, o que pode vir a ter um reflexo positivo no menor número de processos entrados ou, pelo menos, no evitar o seu avolumar.
No entanto, importa ter presente a importância de que, em certas matérias, a especialização se pode revestir, para a melhor organização e funcionamento do serviço nos tribunais, numa otimização de escala dos recursos disponíveis nos tribunais.
Neste sentido, é ampla e diversificada a competência dos tribunais administrativos em matéria de estrangeiros.