“É manifesto que a fraude fiscal é o crime que mais se relaciona com o branqueamento”
Para o diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), “não existe uma estatística devidamente trabalhada em relação aos crimes subjacentes ao branqueamento”, mas, ainda assim, torna-se claro que a fraude fiscal é o crime que neste âmbito mais se destaca. O procurador do Ministério Público (MP) mostra-se agradado com a nova legislação sobre branqueamento de capitais e não aponta qualquer ponto negativo. Por outro lado, e apesar do aumento substancial de comunicações ligadas ao branqueamento, não é claro, para o magistrado, que haja um qualquer aumento de fenómenos criminais ligados ao branqueamento de capitais
Tem havido várias críticas à nova legislação em vigor sobre o branqueamento de capitais, a Lei n.º 83/2017. Que pontos positivos e negativos pode destacar?
A Lei n.º 83/2017 e outros diplomas recentemente publicados (pagamentos em numerário e registo central de beneficiários efetivos) são positivos, desde logo, por transporem para o direito interno a legislação comunitária e as recomendações do Grupo de Acção Financeira Internacional (GAFI). Em termos concretos, considero relevante o facto de ter sido mantido na lei portuguesa um sistema de “dupla comunicação” de operações suspeitas à Unidade de Informação Financeira (UIF) e ao DCIAP. É muito positiva a preocupação do legislador em assegurar um efetivo dever de colaboração por parte das entidades obrigadas. Esta matéria exigia uma melhor clarificação do seu alcance – que no domínio da lei anterior se considerou ser necessária em face da formulação muito genérica desse dever – nomeadamente através da consagração legal da possibilidade de acesso, mediante despacho, à informação financeira, fiscal e outra que se mostre necessária aos procedimentos de averiguação preventiva instaurados no âmbito das investigações de branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo. Reveste-se, igualmente, de importância o facto de o legislador ter estabelecido (art. 81.º, n.º 3) que às ações de prevenção são aplicáveis subsidiariamente as disposições vigentes em relação às averiguações preventivas, permitindo, dessa forma, suprir algumas lacunas em relação aos poderes do MP e ao regime de segredo. Penso, ainda, que o legislador estabeleceu sanções dissuasoras em relação às entidades obrigadas que não cumpram os seus deveres. Nada de particular a apresentar em relação a pontos negativos, uma vez que esta nova lei teve a preocupação de ser muito minuciosa na regulação de situações que a anterior não contemplava, nomeadamente no que concerne à intervenção do MP e ao dever de colaboração das entidades obrigadas.
Uma nota do Ministério das Finanças de novembro deste ano, citada pela imprensa, dava conta de que “o sistema português de prevenção e combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa foi avaliado com nota máxima no plenário do GAFI”, a par do Sistema de Itália e Espanha. Que nota daria ao sistema português e que comparação pode fazer com os de outros países europeus?
Não me cabe dar notas ao sistema português, nomeadamente em comparação com outros países. A verdade é que Portugal foi avaliado pelo GAFI durante vários meses, numa avaliação muito exigente e minuciosa, pela entidade mais credível a nível mundial para apreciar o nível de observância das suas Recomendações, tendo-lhe sido atribuída uma classificação muito positiva. Aliás, esta excelente classificação já tinha sido atribuída a Portugal em agosto de 2015 pelo Instituto Basel de Governação (entidade independente com sede na Suíça) quando, numa lista de 152 Estados, posicionou Portugal nos 12 primeiros países que melhor previnem o branqueamento de capitais. Apenas refiro que o DCIAP tem alocado meios humanos e técnicos na prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento ao terrorismo, num esforço que visa iniciar investigações a situações passíveis de constituir crime ou encaminhar as comunicações para os serviços do MP, onde já correm inquéritos cujos crimes subjacentes já estão a ser investigados. O DCIAP também tem feito um esforço no sentido de alocar meios humanos, ao nível de Polícia de Segurança Pública, para assegurar a necessária análise de informação em relação às comunicações recebidas e coadjuvar os magistrados o DCIAP a quem são atribuídos os processos autuados, na sequência das comunicações de branqueamento. Esta avaliação positiva é um estímulo para evoluirmos ainda mais, na medida em que, neste momento, o relatório do GAFI enunciou alguns pontos críticos e sugestões muito concretas em relação às quais temos consciência de que é possível melhorar o nosso desempenho.
Dos dados que referiu no início de novembro, num debate organizado pela Ordem dos Advogados, destaca-se que, entre 01/09/2016 e 31/08/2017, do total de participações que chegaram ao DCIAP (5965), apenas 0,9% resultaram na suspensão de operações bancárias (54) e 0,7% em inquéritos do DCIAP (43). Não são percentagens baixas? Comunica-se mais, mas não com mais qualidade?
Todos temos consciência de que, nos últimos anos, as comunicações de branqueamento realizadas pelas entidades obrigadas têm aumentado substancialmente, não me parecendo que esse aumento corresponda, de forma direta e imediata, a um aumento exponencial de fenómenos criminais ligados ao branqueamento de capitais. Penso que as autoridades setoriais/de supervisão, na sequência do decorrente das diretivas comunitárias e das Recomendações do GAFI, passaram a ser mais exigentes em relação à necessidade de reporte de determinadas situações que originam comunicações. Por outro lado, as medidas sancionatórias são, neste momento, mais dissuasoras, o que implica um maior número de comunicações.
Penso que o aumento gradual dos últimos anos tem a ver com esta exigência. O importante para o MP é fazer uma análise criteriosa das comunicações que recebe, estabelecer procedimentos internos uniformes que permitam analisar determinadas tendências e fenómenos criminais conexos com o branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo. A função do MP é abrir os inquéritos ou fazer as suspensões de operações bancárias, na sequência das comunicações decorrentes do dever de abstenção, sempre que se verificam os pressupostos legais. Porém, importa sublinhar que – para além de novos inquéritos abertos (de menor número em termos estatísticos) – têm sido extraídas certidões de comunicações de branqueamento para junção a inquéritos já existentes onde, normalmente, já estão em investigação os crimes subjacentes. Ora, no período a que respeitam essas comunicações, foram extraídas 140 certidões, o que equivale, para todos os efeitos, a investigações de branqueamento relativas a comunicações realizadas, mas para junção a inquéritos já existentes. Aliás, situação idêntica tem acontecido em relação ao valor anual das quantias objeto de suspensão de operação bancária. Não é o número de comunicações anuais que é determinante para o aumento ou diminuição dos valores das suspensões de operações bancárias (SOB). Por exemplo, no período de 1/09/2014 a 31/08/2015 ocorreram 3471 comunicações, tendo as SOB atingido o valor de 50.536.113,00€. No período de 1/09/2016 a 31/08/2017 as comunicações ascendem a 5965 e o valor das SOB ascendeu a 26.553.469,80€.
Numa entrevista por escrito ao “Expresso”, refere que está em fase de testes uma nova ferramenta informática no DCIAP que permitirá receber no DCIAP, de forma automática, as comunicações de branqueamento. De que forma a utilização desta ferramenta irá alterar o trabalho que já está a ser executado?
Esta nova ferramenta informática visa agilizar as comunicações de branqueamento, ficando viabilizada a comunicação automatizada por parte das entidades obrigadas. Numa primeira fase, e a título experimental, será feita a comunicação por parte de uma instituição financeira, a que se seguirá a extensão às demais. O objetivo é assegurar, de forma gradual, que todas as comunicações possam ser feitas ao DCIAP e à UIF de forma automática, evitando-se – como hoje acontece – que as comunicações sejam feitas em suporte de papel. Hoje, o registo da comunicação na base de dados de gestão dos processos de prevenção de branqueamento exige o elevado dispêndio de recursos humanos, passando estes recursos a ser utilizados noutras tarefas, nomeadamente na análise de informação e na coordenação. Por outro lado, esta ferramenta está preparada para assegurar uma total desmaterialização do processo – como já acontece com a plataforma de denúncias de corrupção –, permitindo que os magistrados e órgãos de polícia criminal assegurem a tramitação das comunicações, tendo sido criados, igualmente, canais seguros de comunicação automática entre o DCIAP e as entidades obrigadas, nomeadamente para envio de informação complementar necessária à apreciação da comunicação. Esta ferramenta está preparada para a obtenção de uma estatística mais diversificada e de melhor qualidade.
Com o reforço dos recursos humanos que existiu no DCIAP e a criação de novas ferramentas informáticas, está atualmente o DCIAP preparado para responder da forma mais eficaz possível ao combate ao branqueamento de capitais?
Portugal tem que melhorar no domínio do tratamento de dados estatísticos, aspeto que é importante para a análise científica, análise de riscos e controlo da eficácia do sistema. O investimento realizado – a par das preocupações em curso no domínio das ferramentas de gestão do inquérito – permite uma melhoria global de todo o sistema de produção estatística. Continuamos a apostar na especialização dos magistrados e no papel fundamental que o DCIAP deve assumir em termos de coordenação com os outros Departamentos de Investigação e Ação Penal. O combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo será mais eficaz se tivermos acesso à informação necessária à investigação e se tivermos ferramentas informáticas para tratar, de modo adequado, essa informação. Essa preocupação existe e o DCIAP dispõe, também, de ferramentas informáticas que permitem a análise forense da prova recolhida em sede de inquérito. No decurso do ano 2018 estamos em condições de melhorar as ferramentas já existentes, no âmbito de projetos em curso, com apoio de fundos comunitários. A melhoria da eficácia do DCIAP passa por uma melhor coordenação e articulação do MP nas diversas fases (investigação, instrução e julgamento) e têm sido dados passos importantes para responder a estes novos desafios.
Quais as principais dificuldades sentidas neste campo pelo MP?
A maior dificuldade no campo da investigação dos crimes de branqueamento sente-se ao nível da capacidade de resposta no domínio da cooperação judiciária internacional. Pela natureza dos crimes – onde predomina o fluxo financeiro transnacional –, têm que ser aperfeiçoados os mecanismos de cooperação entre países e observadas as exigências internacionais que visam a identificação dos “beneficiários efetivos”, nomeadamente através da criação de bases de dados centralizadas que viabilizem a sua real identificação. A falta de formação especializada na investigação destes crimes é uma preocupação que tem sido encarada com realismo pelo MP, com a adoção de medidas muito concretas, nomeadamente através da candidatura e obtenção de fundos comunitários (através do Fundo de Segurança Interna). Nesse contexto, têm sido concretizadas ações de formação periódicas para os magistrados do MP que investigam a criminalidade económico-financeira, as quais decorrem até ao último trimestre de 2018. Tem havido uma aposta na aquisição de meios tecnológicos de pesquisa da prova digital, prevendo-se para o ano de 2018 – na sequência da concessão de fundos comunitários (OLAF) – que o DCIAP possa ser dotado de uma sala de informática forense.
Quais são as áreas de atividade que suscitam mais suspeitas?
Neste momento, não existe uma estatística devidamente trabalhada em relação aos crimes subjacentes ao branqueamento. Porém, é manifesto que a fraude fiscal é o crime que mais se relaciona com o branqueamento. As atividades onde predominam os pagamentos em numerário para aquisição de bens e serviços são, também, problemáticas e merecedoras de atenção. O tráfico de droga, a corrupção e crimes conexos, bem como as burlas (incluindo as informáticas) e o “phishing”, são realidades que merecem particular atenção.
Ao nível dos MP dos países lusófonos, há a destacar alguma atividade substancial que se possa enquadrar no combate ao branqueamento?
A cooperação entre os países lusófonos no domínio do branqueamento tem sido realizada no âmbito de pedidos de cooperação judiciária internacional.
Como é que as autoridades judiciais podem resolver os problemas que derivam dos conflitos resultantes das imunidades (exemplo, diplomáticas) de suspeitos de países lusófonos, ou outros, que sejam suspeitos de crimes em Portugal?
As imunidades, como quaisquer outras questões jurídicas, são apreciadas no respetivo inquérito à luz das regras do direito nacional, internacional e dos acordos firmados entre os países, independentemente do país.
Em dezembro de 2014, numa conferência no Centro de Estudos Judiciários, falou na necessidade de existir uma maior complementaridade entre peritos e procuradores na indicação do caminho certo. Isto tem acontecido?
Nos inquéritos mais complexos, sempre que as matérias em investigação o exigem, tem vindo a ser solicitada a colaboração de entidades com conhecimentos especializados para coadjuvarem o MP ou, mesmo, como peritos. Nas situações em que tais pedidos de colaboração tiveram lugar, foram muito úteis para o MP fundamentar o seu juízo em relação aos factos em investigação.