“O bom funcionamento do sistema de justiça não se esgota em alterações legislativas”
A Presidente da Associação Sindical de Juízes (ASJP) enfatiza que “os juízes portugueses estão devidamente preparados para o exercício cabal das suas funções”, incluindo no que à criminalidade económico-financeira diz respeito. Critica as “sucessivas e excessivas alterações legislativas, feitas de modo desgarrado” e que acabam por ser “mais prejudiciais que benéficas”
VJ - No âmbito da preparação de um Pacto sobre a Justiça, a ASJP tem participado em quatro grupos de trabalho com a Ordem dos Advogados (OA), o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, a Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução e o Sindicato dos Funcionários Judiciais. Que acordos já há e que possa adiantar? E, relativamente à área penal, há alguma medida urgente a tomar e que a ASJP defenda que deva estar nesse Pacto?
Manuela Paupério – Na verdade, temos trabalhado, juntamente com todas as entidades referidas, com vista à celebração de acordos em várias áreas da justiça. A metodologia seguida ditou a formação de quatro grupos, cada um tratando de um tema específico, mas cada um integrando sempre elementos de todos os envolvidos: organização judiciária, justiça económica, acesso ao direito e criminalidade económica e corrupção. O trabalho tem decorrido com grande normalidade e com regularidade. Porém, no que concerne a eventuais acordos obtidos em cada uma das áreas referidas, não cabe à ASJP divulgá-los, nem adiantar seja o que for, porque o que houver a dizer a esse respeito será dito quando todos estiverem de acordo nessa divulgação. É o que está acordado como princípio.
VJ - Tem sido muito discutida recentemente a “delação premiada”, que também tem sido debatida num dos grupos de trabalho para um Pacto Sobre a Justiça. Disse anteriormente que a proposta obteve grande consenso entre juízes, magistrados do Ministério Público e funcionários judiciais, embora seja público que o Bastonário da OA esteja contra. Será possível, mesmo assim, assistirmos a algum acordo sobre esta figura? Porque é importante que se avance com a “delação premiada” e quais os cuidados a observar?
MP – A delação premiada foi um dos temas abordados no grupo de trabalho que trata da criminalidade e corrupção. É um tema a propósito do qual tem havido muito ruído, sobretudo devido a alguma contaminação e confusão resultante de notícias que vieram a público relativas a casos que correm na justiça brasileira e onde a delação premiada tem sido referida de modo insistente. No nosso ordenamento jurídico penal e processual penal existe já a consagração de um direito premial que concede a quem colabore de modo significativo com a realização da justiça um tratamento penal mais favorável [ler caixa com mais informação relativamente a esta matéria]. Existe, por outro lado, no nosso ordenamento uma série de outras normas dispersas que já preveem mecanismos de colaboração premiada no direito vigente. Ou seja, daqui emerge, claramente, que não estamos a falar de algo novo e estranho à nossa tradição judiciária. A discussão não é, portanto, saber se deve ou não haver colaboração premiada em Portugal, mas sim que colaboração podemos ter e como levar a que os mecanismos já previstos na lei possam produzir melhores resultados. Em que termos e com que contornos, é a discussão que não nos escusamos a fazer e que, na avaliação pessoal que faço, nenhum dos intervenientes nos grupos de trabalho a ela se escusou.
VJ - Que alterações vê como essenciais ao Código Penal e ao Código de Processo Penal?
MP – Em boa verdade, perante a questão assim colocada não sei que resposta dar. O bom funcionamento do sistema de justiça não se esgota em alterações legislativas. Aliás, as sucessivas e excessivas alterações legislativas, feitas de modo desgarrado, são, a esse fim, mais prejudiciais que benéficas.
VJ - A aplicação generalizada da prisão preventiva para tipos de crime com penas iguais ou superiores a três anos poderia ser uma boa medida?
MP – Sinceramente, não creio que seja. O nosso sistema processual prevê já, no seu artigo 202.º, a possibilidade de aplicação da medida de coação consistente na prisão preventiva quando o arguido tiver praticado determinado tipo de crimes, ainda que estes sejam puníveis com pena de prisão superiores a cinco anos na generalidade dos crimes e três anos em determinados tipos de crimes e creio que não se justifica qualquer alteração ao que se encontra consagrado. Mesmo com o atual quadro legal, somos muitas vezes acusados de termos um número excessivo de presos preventivos.
VJ - Os Juízes estão hoje mais bem preparados para julgar casos ligados a crimes conhecidos como de “colarinho branco”?
MP – Creio firmemente que os juízes portugueses estão devidamente preparados para o exercício cabal das suas funções. Têm conhecimentos e preparação técnica. Isto dito, a resposta à pergunta só pode ser de que os juízes portugueses estão devidamente capacitados para a realização de todo o tipo de julgamentos que lhes caiba fazer. Até porque este tipo de crime aporta maiores dificuldades na fase de investigação do que na fase de julgamento. Este decorrerá nos termos e seguindo os mesmos princípios de todos os outros. No caso de a matéria sujeita a julgamento requerer a análise de prova específica – extratos bancários, análise de fluxos financeiros, operações efetuadas através de offshores –, poderão/deverão os juízes socorrerem-se de assessorias técnicas que lhes torne mais fácil a apreciação da prova existente no processo. Mas isto não é específico do julgamento deste tipo de crimes.
VJ - Um seu colega e antecessor no cargo de Presidente da ASJP afirmou uma vez que no nosso sistema prevalece um desequilíbrio em favor do arguido, sendo necessário passar a haver uma maior harmonia entre os direitos dos arguidos e os direitos das vítimas. Concorda com esta opinião? Tendo em conta a sua experiência, ainda se assiste a este desequilíbrio?
MP – Importa perceber o que se quer dizer quando se afirma haver um desequilíbrio entre o arguido e a vítima. Desconheço em que contexto essa afirmação foi proferida e quais as razões que a fundamentaram. Evidentemente que é sobre o arguido que o Estado exerce a sua autoridade punitiva e só o pode fazer no estrito cumprimento e respeito pelos princípios que constitucionalmente se encontram consagrados, sendo o da presunção de inocência o primeiro e basilar do qual emergem todos os demais; o seu direito de defesa, a obrigação de ser assistido por advogado, o direito ao recurso, o direito a ser ouvido por um juiz, o direito ao silêncio… etc. A vítima pode sentir-se subalternizada no processo e no seu desenrolar quando, por exemplo, tem de aguardar pelo seu desfecho para ver ressarcidos prejuízos que tenha sofrido e cuja reparação reclama. Muitas vezes isso sucede. Poderia esse aspeto ser minorado se, em situações determinadas, o Estado assumisse a sua reparação antes mesmo do desfecho do processo – ficando depois com o direito de regresso relativamente ao arguido. A Lei 130/2015, de 04/09, veio consagrar o estatuto da vítima, estabelecendo normas relativas aos seus direitos, apoio e proteção, criando aí a figura da “vítima especialmente vulnerável”, estatuindo, para estas, procedimentos especiais e direitos particulares e prescrevendo regras específicas de procedimento quando a vítima do crime for uma criança. Em toda esta regulamentação o legislador pretendeu tornar menos onerosa, para a vítima, a sua intervenção no processo, fazendo-a ciente dos direitos que lhe assistem e explicitando o modo de os fazer atuar. Estatui mecanismos legais tendentes a minorar consequências traumáticas resultantes da circunstância de ter de repetir, nas várias fases do processo, o relato do crime que a vitimou. Creio que esta foi uma forma de equilibrar, no processo, os direitos da vítima e do arguido.
VJ - Um trabalho do “Público” esta semana, veio revelar que um em cada 73 cidadãos dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) está preso enquanto um em cada 736 cidadãos portugueses está preso. A Justiça em Portugal é mesmo “mais dura para os negros”, como é apontado nesse trabalho, na sua opinião?
MP – Não tendo certeza da validade das estatísticas reveladas no trabalho jornalístico em questão, desde logo porque em Portugal não há recolha oficial de dados étnico-raciais, a perceção é a de que no sistema judicial português não existe discriminação. Não obstante, por vezes, chegam-nos notícias, como esta, que, tendo o condão de nos alertar para determinadas situações, apenas demonstram que a realidade judiciária reflete a realidade social existente. Se o estudo fosse feito para saber qual a taxa de sucesso escolar entre a população portuguesa e os cidadãos dos PALOP, ou de entre estes a percentagem daqueles com empregos estáveis e bem remunerados, ou ainda onde se regista maior nível de abandono escolar, os resultados provavelmente seriam muito semelhantes. Muitas dos que na notícia são referidos como cidadãos dos PALOP são, na realidade, portuguesas. Nasceram já em Portugal e nunca viram o país que consta como sendo o seu. Por outro lado, muitos dos portugueses nomeados poderão ser de raça negra. Por isso, tirando o caso, que nunca se poderá excluir, de poder haver decisões condicionadas por preconceitos de raça que se podem manifestar quer na aplicação de penas de prisão mais pesadas a cidadãos dos PALOP do que as aplicadas a cidadãos portugueses, pelo mesmo tipo de crime, ou na não aplicação àqueles de penas de substituição à pena de prisão, o que mais determina a maior ou menor intervenção do sistema judicial relativamente a um grupo social são mesmo as suas concretas condições de vida. Em grupos sociais onde exista maior precariedade laboral, menor investimento escolar, condições de vida mais degradadas, seguramente que existirá maior incidência de adoção de comportamentos marginais e o sistema judiciário será, por isso, mais vezes chamado a intervir.
VJ - Como vê e acompanha o desenvolvimento do direito penal nos restantes países lusófonos? E quais os trabalhos desenvolvidos com outros países lusófonos, nesta área, no âmbito da União Internacional de Juízes de Língua Portuguesa?
MP – O acompanhamento tem sido feito pela ASJP essencialmente através da presença na União Internacional de Juízes de Língua Portuguesa, atualmente presidida pelo Brasil e cujo secretário executivo é o representante da ASJP. A este propósito, importa salientar o esforço que os países lusófonos têm feito na adaptação da sua legislação penal e processual penal aos tempos modernos, tanto mais que a sua legislação base assentava essencialmente nos Códigos Portugueses pós-revolução de abril de 1974.
Nesta área tem sido relevante o trabalho desenvolvido no âmbito da União Internacional de Juízes de Língua Portuguesa, com a realização de vários eventos (por iniciativa própria ou em colaboração), de que são exemplo o recente Fórum Nacional de Juízes Criminais, que decorreu no início deste mês de agosto no Brasil, ou o Seminário Internacional «Corrupção e Fragilidade das Instituições Políticas e Judiciais», que decorreu na Guiné-Bissau no passado mês de junho. Apesar das dificuldades orçamentais da União Internacional de Juízes de Língua Portuguesa, que não tem receitas próprias, afigura-se relevante à ASJP o reforço da cooperação judiciária no âmbito dos países lusófonos, assumindo a referida organização um papel fulcral, desde logo por contar com a participação de todos os países de língua oficial portuguesa. Exemplo deste reforço de cooperação é a realização, no próximo mês de outubro, em Portugal, de um seminário/conferência subordinado ao tema «A Independência dos Tribunais e a Segurança dos Juízes».
VJ - Existe uma verdadeira partilha de experiências entre as várias instituições da Justiça dos vários países lusófonos com o intuito de um melhoramento mútuo do sistema de Justiça de cada país tendo em conta a experiência de cada um?
MP – Conforme referido anteriormente, afigura-se à ASJP relevante o papel desenvolvido pela União Internacional de Juízes de Língua Portuguesa, que tem permitido uma maior proximidade entre o judiciário dos vários países lusófonos e permitido uma efetiva partilha de experiências na área da justiça. Naturalmente que os seminários, congressos, colóquios ou fóruns organizados têm como principal objetivo o melhoramento dos sistemas de Justiça de cada país tendo em conta a experiência de cada um. É certo que as dificuldades orçamentais referidas atrás são um entrave ou um obstáculo difícil de ultrapassar. Mas o caminho terá que ser pelo aprofundamento da cooperação e pelo reforço da representatividade e da atuação da União Internacional de Juízes de Língua Portuguesa e das Associações de Juízes que a compõem.
VJ - Foi aprovada recentemente a Lei n.º 83/2017, que consagra medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo. Qual a sua opinião sobre este diploma? Crê que vá ser eficaz?
MP – A legislação agora publicada transpõe parcialmente as diretivas 2015/849/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, e 2016/2258/UE, do Conselho, de 06 de dezembro de 2016, altera o Código Penal e o Código da Propriedade Industrial e revoga a Lei n.º 25/2008, de 5 de junho, e o Decreto-Lei n.º 125/2008, de 21 de julho. A lei estabelece ainda as medidas nacionais necessárias à efetiva aplicação do regulamento (UE) 2015/847, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativo às informações que acompanham as transferências de fundos e que revoga o Regulamento (CE) 1781/2006. O diploma apresenta alguns pontos positivos, reforçando os poderes do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, permitindo que esta estrutura do Ministério Público aceda diretamente e mediante despacho a toda a informação financeira, fiscal, administrativa, judicial e policial necessária aos procedimentos de averiguação preventiva subjacentes ao branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo. O diploma dá também especial importância à troca de informações entre autoridades e, em especial, pela Unidade de Informações Financeiras (UIF) da Polícia Judiciária, e alarga o conceito de «pessoas politicamente expostas», entendidas como indivíduos que, pela posição política que ocupam ou ocuparam, ou por relação familiar, implicam um acompanhamento especial por parte das instituições financeiras. A atribuição de maiores poderes ao sistema judiciário para o combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo é sempre positiva, ainda para mais nos tempos conturbados que vivemos, mas uma cabal avaliação da eficácia das normas previstas no diploma só poderá ser efetuada com o decurso do tempo.
VJ - Já foi obtida alguma resposta do Governo em relação à carta-aberta enviada em julho pela ASJP e que poderá desbloquear a greve marcada para outubro relacionada com alterações ao Estatuto dos Magistrados Judiciais?
MP – Não. Não foi obtida qualquer resposta.
VJ - Qual a sua análise ao trabalho desenvolvido pela atual Ministra da Justiça?
MP – A Sr.ª Ministra da Justiça integra um governo que tem demonstrado não ter os assuntos da justiça como prioridade. Infelizmente, não é uma característica própria deste Governo, porque a justiça tem sido, verdadeiramente, um parente pobre em todos os governos que a nossa memória consegue alcançar. A Sr.ª Ministra mais não faz que executar o programa do Governo.