Empresas que demonstrem dificuldades económicas devem aceder ao apoio judiciário
O preço da Justiça em Portugal é “escandaloso”, considera a bastonária da Ordem dos Advogados (OA), Elina Fraga. Em entrevista à “Vida Económica” à margem das Jornadas de Direito da Insolvência, que decorreram na última semana na Porto Business School, em Matosinhos, a advogada, que se recandidata a um novo mandato na Ordem, lembra que, com a tramitação eletrónica dos processos, “grande parte os custos judiciais associados à Justiça foram transferidos para o cidadão”. E isso, diz, significou para o Estado “vários milhares, senão milhões de euros” de poupança, mas que não teve “como correlativo uma diminuição das custas judiciais”.
Para Elina Fraga não há dúvidas: “é necessário começar a trilhar um caminho novo, no sentido de o acesso à Justiça ser garantido a pessoas com fragilidade económica, quer sejam as pessoas em nome individual, quer sejam as pessoas coletivas, desde que elas demonstrem a sua incapacidade de proceder ao pagamento dessas taxas”.
Vida Económica – Na intervenção que proferiu no encerramento nas Jornadas de Direito da Insolvência, em Matosinhos, lamentou o facto de ser necessário recorrer a consensos nos tribunais face a certas matérias, dizendo que isso “resulta da má técnica legislativa dos PER e das insolvências”. Defende uma revisão do CIRE?
Elina Fraga – Repare, aquilo que resultou aqui de forma inequívoca, sobretudo dos juízes dos tribunais centrais de comércio, é que têm de estabelecer patamares de acordo para uniformizarem interpretações. Ora, quando tem de haver um acordo entre vários juízes de um tribunal para que se possa interpretar a lei, isso significa que há uma má técnica legislativa, que a lei não é clara, não é transparente e é suscetível de várias interpretações. E isso necessariamente culmina na insegurança jurídica. E pode ocorrer aquilo que foi aqui dito pela senhora juíza da comarca do Porto Este [Helena Morgado], em que, nas impugnações, não se paga uma taxa de justiça e um outro juíz que diz que se paga. Repare: estamos a falar de uma operação que devia ser matemática. Devia ser tão inequívoco que todos soubessem se se deve ou não pagar taxa de justiça. E este foi um exemplo, mas podia elencar-lhe um conjunto de outros aqui abordados nestas jornadas.
VE – Então, o que é que defende, concretamente?
EF - O que é necessário é que o Ministério da Justiça oiça aquelas pessoas que se especializaram nesta matéria, que oiça os juízes dos tribunais de comércio, que oiça a Ordem dos Advogados que, naturalmente, também ouvirá os advogados mais qualificados nesta área, enfim, que oiça os operadores judiciários que conhecem os entorses da legislação ligada às insolvências. E que permita uma agilização e a criação de uma legislação que não seja ambígua e que não dê aso a questões que prejudicam o andamento dos processos, que retiram dignidade à função soberana de administração da Justiça. Isto, porque o juiz, ao invés de estar a fazer a administração a justiça, está a tentar decifrar legislação esquizofrénica e, até, muitas vezes, a colmatar certas lacunas que existem na lei.
VE – Tendo em conta o tempo de publicação [o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) entrou em vigor em 15 de setembro de 2004 e foi alterado pela Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, que introduziu o mecanismo do Processo Especial de Revitalização (PER)] e a reflexão que todos – advogados, magistrados, administradores judiciais - já tiveram de fazer, este seria o momento certo para rever o CIRE?
EF – Sem dúvida. Repare: nós hoje temos a noção que os tribunais de comércio estão afundados, por força da grande concentração de processos que decorreu da criação dos tribunais especializados e da competência territorial alargada que lhe foi conferida mas, na verdade, sem que houvesse uma dotação de recursos humanos profissional ao número de processos. E a verdade é que essa concentração já exige uma grande concentração da parte do juiz. E ele não pode estar também disperso em pequenos entorses que já estão identificados e em que uma rápida alteração legislativa permitiria uma maior agilização processual, que tanta falta faz.
VE – Já deu conta dessa preocupação à ministra da Justiça?
EF – Já dei conta à senhora ministra desta e de muitas outras preocupações. A Ordem dos Advogados, numa atitude proativa que tem de ter e no exercício da atividade da própria Ordem que é a apresentação de propostas legislativas, apresentou-lhe um conjunto de propostas legislativas em relação às matérias que entendeu serem prioritárias – o mapa judiciário, a devolução ou restituição dos inventários aos tribunais, o reforço dos atos próprios dos advogados, a regulamentação do sistema de acesso ao Direito mas, também, [propôs] revisitar algumas legislações em que, enfim, não é preciso reformar tudo, mas nas quais é preciso uma intervenção meramente corretiva. É isso que a Ordem deseja que seja feito. E estes palcos de debate, como estas Jornadas de Direito da Insolvência, são espaços por excelência para que a própria Ordem tenha uma perceção mais direta dos entorses que ainda subsistem e possa dar um contributo junto do Ministério da Justiça que permita minorar esses entorses e para que possamos ter uma Justiça que seja mais próxima, mais acessível e mais célere.
VE – Que opinião tem sobre os recentes ajustes feitos pelo Ministério da Justiça ao Mapa Judiciário?
EF – A Ordem dos Advogados teve uma postura muito crítica em relação à reorganização judiciária, levada a cabo pela anterior ministra da Justiça, uma vez que houve uma alteração da matriz territorial das comarcas. As comarcas tinham uma coincidência com o município e hoje têm uma coincidência com o distrito administrativo. Esse alargamento geográfico acarretou um distanciamento dos tribunais e hoje temos uma Justiça menos próxima, pelo menos geograficamente, dos cidadãos.
VE – E esta nova reorganização reaproxima os cidadãos da Justiça?
EF – Não tanto quanto a ordem dos Advogados desejaria, mas penso que é um primeiro passo no sentido dessa reaproximação. A Ordem, chamada, teve intervenção, teve várias reuniões, quer com as senhoras secretárias de Estado, quer com a senhora ministra da Justiça e entendeu que a prioridade absoluta residia sobre uma intervenção corretiva nos tribunais de família e menores. É aí onde estão problemas que, em geral, ate são tramitados em processos urgentes exatamente por o legislador ter consciência da natureza dos processos que aí são tramitados. E esses tribunais estavam colapsados, por um lado, e afastados, por outro, quando sabemos que muitas vezes quem recorre a eles são famílias desestruturadas, famílias com problemas de inserção social, com problemas graves de índole económica. E há uma intervenção que nós saudamos muito, por um lado, e uma reaproximação para as populações onde os tribunais foram encerrados e onde voltarão a ser feitas diligências, designadamente os julgamentos de processos-crime com intervenção de tribunal singular.
VE – Em matéria de insolvências e de processos de revitalização (PER), a reorganização que acabou por ser feita agrada-lhe?
EF – Não. Eu costumo dizer que o problema é que o legislador olha para o país como se fosse um todo. O país é assimétrico. E do meu ponto de vista tem de se fazer uma reflexão. É evidente que a especialização é uma mais-valia. Esse é um dado absolutamente incontestável, e é evidente que não podemos ter um tribunal especializado em cada um dos municípios. Dito isto, a primeira garantia que o Estado tem de dar ao cidadão é o de poder aceder à Justiça. É isso que está na Constituição da República. Garantido esse direito fundamental, o Estado deve garantir uma Justiça com qualidade. E se for especializada melhor. E na medida em que a especialização se pode traduzir numa denegação da Justiça - por o afastamento das populações ser tão grande que as populações podem não ter acesso à Justiça - deve haver uma devolução para as instâncias locais. E por isso é que eu disse que se tem de olhar para o país como duas realidades distintas. Uma é a que se vive no Porto, em Lisboa, Coimbra e nos grandes centros urbanos, em que a especialização é uma mais-valia, em que existe uma rede de transportes públicos, em que as pessoas em geral têm rendimentos que lhes permitem deslocar-se aos tribunais ou têm veículo próprio. Outra realidade distinta é dos municípios em que as pessoas estão envelhecidas, têm fracos recursos económicos, onde não existem infraestruturas rodoviárias nem uma rede de transportes públicos. Aí, o Ministério da Justiça terá de fazer intervenções corretivas, no sentido de este tipo de processos poder ser também tramitado nas instâncias locais. Perde-se na especialização, é um facto, mas ganha-se na proximidade. E, como disse há pouco, em primeiro lugar está o acesso à Justiça.
VE – Fala em acesso à Justiça. Como qualifica o preço que os cidadãos e as empresas pagam para terem acesso à Justiça? As taxas de justiça são razoáveis ou deveriam ser reduzidas?
EF – Eu acho escandaloso o que em Portugal se paga de custas judiciais. Se reparar, grande parte os custos judiciais associados à Justiça foram transferidos para o cidadão. Repare que a tramitação eletrónica dos processos significou para o Estado vários milhares, senão milhões de euros, uma vez que não tem de imprimir as notificações, não tem de notificar os mandatários por via postal. E esses encargos foram transferidos para os advogados, que têm de imprimir nos seus escritórios as notificações. Foram transferidos os custos associados às deslocações, com esta reorganização judiciária. Estando os tribunais mais distantes, para além dos encargos que já existiam, é necessário também suportar as despesas de deslocação, da própria parte, muitas vezes, das testemunhas e dos mandatários. Portanto, há um conjunto de custos transferidos do Estado para o cidadão. Do Estado, esse que tem de assegurar a administração da Justiça, e não há, como correlativo, digamos assim, uma diminuição das custas judiciais. E isso tem um impacto muito negativo, porque as pessoas começam a não ter capacidade económica para suportar as custas e todos os demais encargos do recurso à Justiça. E quando falha a Justiça administrada pelo Estado, podem aparecer justiças alternativas tantas e tantas vezes têm aparecido denunciadas, de pessoas que, em vez de cobrarem os seus créditos nos tribunais, recorrem a empresa ilícitas de cobrança de créditos, com práticas imorais, criminosas, em que a pessoa é perseguida e coagida para pagar uma dívida exatamente porque a Justiça não é cessível. E começam-se a procurar caminhos alternativos que são incompatíveis com o patamar de civilização que atingimos. E, portanto, a Ordem dos Advogados defende que as custas sejam reduzidas, trilhando-se um caminho que a própria Europa está a trilhar. Em Espanha houve uma diminuição das custas muito radical, sendo até a esmagadora maioria praticamente eliminada. Portanto, há uma Justiça tendencialmente gratuita que deve ser também um caminho a percorrer por Portugal.
VE – E em relação aos custos da Justiça para as empresas?
EF – Sobre as empresas há uma nota que quero deixar. Há sob o meu ponto de vista um agravamento, pelo facto de se tratar de uma pessoa coletiva, porque as pessoas coletivas não beneficiam de apoio judiciário. O que significa que uma empresa pode estar com falta de condições para recorrer ao tribunal mas, ainda assim, é obrigada a pagar as taxas de justiça. E também aí é necessário começar a trilhar um caminho novo, no sentido de o acesso à Justiça ser garantido a pessoas com fragilidade económica, quer sejam as pessoas em nome individual, quer sejam as pessoas coletivas, desde que elas demonstrem a sua incapacidade de proceder ao pagamento dessas taxas.
VE – Está a defender a extensão do acesso ao apoio judiciário às empresas em dificuldade?
EF – Exatamente. Estou a defender exatamente isso.